Fepesp - Federação dos Professores do Estado de São Paulo

Por Beth Gaspar em 24 de setembro de 2020

Estudantes criam dicionário biográfico com mais de 2 mil brasileiros excluídos da história oficial do país

Da agência de reportagens Saiba Mais

 

O tema serviu de mote para 6.753 alunos do país inteiro que participaram da quinta fase da Olimpíada Nacional em História do Brasil do ano passado, organizada pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Eles construíram juntos o Dicionário Biográfico dos Excluídos da História. Nele, é possível encontrar informações sobre 2.251 figuras que, dificilmente, estarão disponíveis nos livros tradicionais.

A ideia nasceu após o enredo campeão “História pra Ninar Gente Grande”, da Estação Primeira de Mangueira, em 2019, que contou a história de personagens “esquecidos” e “silenciados” pela história oficial.

Falar sobre feminismo hoje talvez seja mais fácil, mas em 1930, quando a mulher sequer tinha direito ao voto, Alzira Soriano se tornou a primeira prefeita eleita do Brasil e da América Latina. Ela foi a escolhida para chefiar a cidade de Lajes com 60% dos votos masculinos. A história é apenas uma dentre as 312 que os estudantes levantaram somente sobre o Rio Grande do Norte. Os personagens vão de “A” a “Z” e passam por figuras folclóricas como a viúva Machado, que ganhou má fama e foi discriminada depois de assumir o posto de chefia após a morte do marido, a figura de Maria Boa, que teve uma conhecida casa de prostituição durante a passagem dos norte-americanos por Natal, além de alguns simplesmente ignorados como o cordelista Xexéu e o ex-combatente da Segunda Guerra, Zé Sena.

 

Para ter acesso a todos os verbetes do Dicionário de Excluídos da História clique aqui

 

Cada grupo é formado por três estudantes sob a orientação de um professor. Por causa da qualidade do material elaborado pelos estudantes, a Unicamp decidiu publicar o Dicionário.

“Começamos a trabalhar com a ideia de quem são esses personagens ignorados pela história e pelos meios de comunicação de massa. Pedimos que apresentassem o personagem, fizessem uma biografia e dissessem por que essa pessoa deveria estar nos livros didáticos e por que eles não estavam. A gente observou que os personagens que mais apareceram foram as mulheres, os negros, as mulheres negras e os líderes indígenas. Os estudantes construíram uma espécie de outra história do Brasil, alguns trabalharam com figuras do século passado, outros trouxeram pessoas ainda vivas, são professores que tiveram atuação durante a Ditadura Militar, líderes locais. Nós percebemos que eles, mesmo jovens, têm uma percepção do que é um personagem histórico muito ampla, muito mais interessante do que o que você vê na televisão. Eles têm uma percepção muito correta do que é a historiografia, ficamos muito felizes com o resultado e por isso decidimos publicar”, explica Cristina Meneguello, Coordenadora do Departamento de História da Unicamp.

 

Uma turma que vale ouro - Os estudantes do IFRN Campus Mossoró Nicolas Gustavo, Mariana Medeiros e Thiago Gurgel, formaram a equipe “Villas Boas”, sob a orientação do professor José Gerardo Bastos da Costa Júnior. O grupo, que foi medalha de prata em 2018 e ouro em 2019, decidiu pesquisar sobre Emmanuel Bezerra dos Santos, estudante, poeta e militante assassinado pela Ditadura Militar.

Antes da pesquisa não sabíamos nada sobre ele. Quando encontramos um estudante que não se calou perante o regime militar, ficamos muito interessados. Descobrimos que ele foi presidente da casa do estudante de Natal, filiou-se ao PCR (Partido Comunista Revolucionário) como dirigente e que também foi acusado de terrorismo por suposto atentado ao general Costa e Silva, em 1966. Ele também era poeta, uma pessoa como qualquer outra, mas que viveu a dualidade entre controle e protagonismo militante. A história que está nos livros exalta os ‘heróis’ que acabam sendo os que a gente aprende desde a escolinha. Ter a oportunidade de dar visibilidade a outros personagens historicamente importantes me mostrou o quanto ainda há para conhecer. Aprender sobre os fatos históricos me fez desenvolver um senso maior de papel social, de como minha ação afeta o outro e como posso me posicionar na causa do outro”, conta Thiago Gurgel, que concluiu o ensino médio e foi aprovado no curso de medicina da UERN (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte).

 

Em tempos de notícias falsas e pouca consciência social, os estudantes demonstraram uma maturidade nem sempre desenvolvida por alguns adultos.

Conheci a Olimpíada no meu 8° ano, com apenas 13 anos. Foram 4 edições participando e 2 finais. Durante todos esses anos ela ajudou a compreender muito mais sobre o país em que vivo, conhecer lugares que nem imaginava existir, além de mostrar que a história não se faz só com o que está escrito nos livros. Encontramos em nossas pesquisas personagens que contribuíram, cada um a seu modo, com a construção do que hoje chamamos de Brasil, seja em vida ou morte. Músicas, comidas, cemitérios, poemas, manifestos, seja qual for a forma de expressão, todos eles contam um pedaço da história de um local, mesmo que não reconhecidos. Emmanuel deu a vida pela sua luta, assim como vários outros excluídos da história, os quais permanecerão agora presentes e reconhecidos em nossas memórias”, avalia Mariana Medeiros, que esse ano vai fazer ENEM para o curso de medicina.

Emmanuel Bezerra (foto ao lado) representava uma posição combativa ao regime ditatorial que se instalara. Dessa forma, sua história tem muito a nos contar sobre luta e democracia. Não conhecia o personagem e, com as pesquisas, percebi como a Ditadura se restringiu ao eixo Rio e São Paulo, influenciando também as dinâmicas de outros estados. A olimpíada contribui no entendimento da história para além do “decorar”, para questionar e refletir sobre os acontecimentos e sobre nosso mundo, já que ‘o presente está cheio de passados’. Resgatar essas histórias que por muito tempo foram ignoradas pela historiografia oficial é, de certa forma, subverter a estrutura social de repressão e silenciamento que produziu esse discurso histórico“, analisa Nicolas Gustavo, aprovado este ano em medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC).

O responsável por orientar essa turma interessada foi o professor Gerardo Júnior, que até se surpreendeu com alguns personagens levantados por outras equipes.

Há vários personagens que eu não conhecia. Estudantes de um município trouxeram a história de um cara que era tido como assassino, mas eles descobriram que, na verdade, ele foi vítima do sistema jurídico e era inocente. São histórias superinteressantes.  Infelizmente, a história é escrita pelos vencedores. Aqueles que pertenceram a grupos socais que tinham mais relevância dentro daquela sociedade, principalmente econômica, se sobressaíram. Outra coisa é que a nossa história é muito voltada para o sul e sudeste do país, pouco é falado sobre as outras regiões. A Olimpíada também tem o objetivo de mostrar que existem histórias e personagens importantes nas outras regiões. É uma forma de ressignificar a história, reestruturá-la e trazer à baila essas pessoas que tiveram uma participação importante, mas não foram selecionadas para estar nos livros de história”, comenta o professor.

Esse ano, o RN tem 969 equipes inscritas, sendo 195 só do Campus Central Natal e Mossoró. O número representa mais de 20% das equipes inscritas.

Apesar dos estudantes do IFRN adorarem a disciplina, a maioria deles não vai fazer história. Serão engenheiros, médicos, vão para a área do Direito. Esperamos que eles se tornem profissionais mais humanos”, se orgulha Gerardo Júnior.

 

2020: Como será a Olimpíada Nacional em História do Brasil na pandemia - Normalmente, a Olimpíada Nacional de História do Brasil tem 6 fases e uma duração de dois meses. As cinco primeiras etapas são virtuais e apenas na última os estudantes viajam à sede da Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo, para fazer uma prova. Mas, esse ano, por causa da pandemia do novo Coronavírus, tudo será online. A plataforma foi toda adaptada para facilitar a realização das provas por celular e reduzir o uso de dados. O evento começou no último dia 14 e segue até 30 de outubro. No dia 22 de novembro serão divulgados os medalhistas. Podem participar da Olimpíada estudantes do 8º e 9º ano do ensino fundamental, além de todos os anos do ensino médio, sob a orientação de um professor.

Além de estimular o conhecimento em história, a Olimpíada também é um momento para aprender a trabalhar coletivamente e transformar em prática, o conhecimento teórico.

“A Olimpíada usa uma sistemática de contato com fontes, temas e problematizações que, geralmente, são pouco exploradas na educação básica. Então, a partir da ideia de um ‘game científico’, os estudantes praticam elementos básicos do trabalho e pensar histórico-científico. Você vivencia melhor o conhecimento e o transforma em saber quando o compreende na prática”, analisa Ridson Araújo, que orientou equipes do estado do Ceará.

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