Todos concordam que as escolas devem ser tratadas como prioridade: “as últimas a fechar e as primeiras a reabrir”, dizem os educadores. O problema é como fazer essa reabertura com segurança, justamente no momento em que a pandemia atinge seu ponto mais crítico no Brasil, com mais de 1.700 mortes por dia, sistemas de saúde em colapso e o vírus se espalhando numa velocidade bem maior do que as vacinas em todo o País.
As evidências científicas acumuladas até agora, com base na experiência de outros países (que reabriram suas escolas bem antes do Brasil, ou nem chegaram a fechá-las) sugerem que as escolas não são um ambiente particularmente perigoso para a disseminação do novo coronavírus. Os riscos são, essencialmente, os mesmos associados a outros ambientes de convívio social, como lojas e restaurantes, que há muito tempo já voltaram a funcionar — ainda que de forma limitada. Tomadas as devidas precauções de distanciamento, higienização e uso de máscaras, a escola pode até ser considerada um ambiente mais seguro do que outros, visto que o risco de transmissão é menor entre crianças e adolescentes do que entre adultos.
“A evidência de surtos entre alunos é baixíssima”, diz o médico e pesquisador Marcio Bittencourt, do Hospital Universitário da USP, que coordenou um estudo de revisão sobre o tema para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no início deste ano. O que não significa que não possa ocorrer a transmissão do vírus de uma criança para outra, ou mesmo de uma criança para um adulto; mas a probabilidade de o vírus se espalhar rapidamente para um grande número de pessoas dentro do ambiente escolar parece ser pequena.
“As evidências atuais sugerem que o risco de contaminação dentro do ambiente escolar não é maior que o risco comunitário onde a escola está inserida, e que a reabertura das escolas não está associada à piora da evolução da pandemia. Por isso, a reabertura das escolas deve ser uma prioridade dentro da estratégia de controle da covid-19, que pode ter seu resultado balanceado com o fechamento de outras atividades não essenciais e implementação de medidas sanitárias e distanciamento social”, diz a revisão do BID, que levou em conta os resultados de mais de 900 estudos e artigos publicados sobre o tema, desde o início da pandemia até 15 de janeiro deste ano.
Além do menor risco de transmissão e contágio, a doença costuma se manifestar de forma mais branda em crianças e jovens do que em adultos. Dados compilados pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) indicam que crianças e adolescentes representam menos de 1% da mortalidade e 2% a 3% das internações hospitalares por covid-19.
“De uma forma geral, o risco em todos os aspectos de covid-19 na população infantil é menor do que em adultos”, resume Bittencourt. A probabilidade de um aluno desenvolver formas graves de covid-19, portanto, é bastante reduzida, ainda que não possa ser descartada. Em alguns casos, o coronavírus pode desencadear um quadro extremamente grave de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), cuja incidência aumentou em vários países desde o início da pandemia.
No caso de professores e funcionários, as evidências sugerem que o risco de contrair o novo coronavírus no ambiente escolar não é maior do que em outros ambientes coletivos (desde que as medidas básicas de prevenção sejam respeitadas), e varia de acordo com o nível de transmissão comunitária do vírus nas regiões atendidas pela escola. Ou seja: quanto maior ou menor a quantidade de vírus circulando no entorno da escola, maior ou menor, também, a chance do vírus aparecer dentro dela. A priori, trabalhar numa escola não é mais perigoso do que trabalhar numa padaria, numa loja de roupas ou numa estação de metrô. “Não é um ambiente de risco em particular”, diz Bittencourt.
“As experiências de retorno às escolas em países europeus e nos Estados Unidos mostraram baixos índices de infecção e complicações tanto nos alunos quanto na comunidade escolar”, diz uma nota técnica divulgada pela SBP em janeiro deste ano. “Se as medidas adequadas de distanciamento físico e higiene forem aplicadas, é improvável que as escolas sejam ambientes de propagação mais significativos que outros ambientes ocupacionais ou de lazer com densidades semelhantes.”
“O cenário é muito mais complexo do que as pessoas imaginam”, diz o cientista político Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e ex-coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “Temos que trabalhar para que o retorno às aulas aconteça o mais breve possível, mas antes temos que resolver outro problema gigantesco, que é a pandemia.” As boas experiências relatadas pelos países desenvolvidos, segundo ele, não se encaixam na realidade das escolas públicas brasileiras. “As pessoas discutem esse assunto com os pés no Brasil, mas a cabeça na Europa”, diz Cara. “A questão concreta é que, nesse momento, não é seguro mandar os alunos para a escola. Nosso cenário é terrível; não tem como negar essa realidade.”
A SBP também reconhece o problema: “Uma questão central fundamenta-se na hipótese de que a maioria das escolas, principalmente das redes públicas, não esteja estruturada adequadamente para garantir segurança básica no retorno dos alunos às aulas presenciais. Enfatiza-se o grande problema brasileiro das desigualdades sociais, que neste tema traz novamente o foco para as crianças e adolescentes de classes menos favorecidas, que pagam o maior tributo a esta situação”, diz a nota técnica da entidade, com sede no Rio de Janeiro. “Todos esses meses de fechamento das escolas não parecem ter determinado atitudes propositivas de investimentos e revisão das condições físicas, materiais e funcionamento das escolas. Nenhum tempo a mais pode ser perdido neste sentido e a sociedade, em geral, precisa cobrar das autoridades esse movimento.”
Em São Paulo, mesmo com a endurecimento das medidas de restrição e o recuo para a chamada “fase vermelha”, o governo do Estado optou por manter as escolas abertas — “com cuidados extremos e focadas nas pessoas que mais precisam”, disse o secretário estadual da Educação, Rossieli Soares, na coletiva de imprensa que anunciou a medida, no último dia 3. A frequência não é obrigatória e o ensino a distância será mantido, mas as escolas deverão permanecer abertas para receber aqueles que necessitarem de atendimento presencial. “Temos pessoas que precisam muito da escola”, ressaltou Soares. Não só pela questão pedagógica, mas também como um ambiente de proteção, acolhimento e alimentação. “A escola tem que ser a última coisa a fechar.”
Não foi uma decisão simples. Um dia antes da coletiva, o secretário da Saúde, Jean Gorinchteyn, chegou a defender publicamente o fechamento das escolas, em entrevista à Rádio CBN, reproduzindo localmente o embate travado entre o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).
Sindicatos e outras organizações ligadas ao setor têm monitorado o surgimento de casos de covid-19 nas escolas desde o início do ano. Sem uma investigação mais detalhada de cada ocorrência, porém, não há como saber se as infecções estão acontecendo dentro ou fora do ambiente escolar — por exemplo, se um professor pegou o vírus na sala de aula, no transporte público ou na padaria do bairro. Em São Paulo, tanto o sindicato de professores da rede pública (a Apeoesp) quanto da rede privada (SinproSP) criaram canais para receber notificações de casos de covid-19 e denúncias contra escolas que estejam desrespeitando protocolos de segurança sanitária.
Para o médico epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP, caberá à sociedade nessa nova fase de restrições decidir “o que será mais arriscado e, principalmente, desejado”: manter o comércio funcionando, ou reabrir escolas. “Obviamente, a prioridade é a abertura das escolas, priorização da vacinação aos trabalhadores da educação e melhoria das condições sanitárias de todos os estabelecimentos”, escreve o pesquisador, em artigo para o Jornal da USP.
Sem planejamento - A adesão aos protocolos de segurança é essencial, mas falta ainda muita orientação do poder público e compreensão da população com relação a isso, diz a pesquisadora Lorena Barberia, professora do Departamento de Ciência Política da USP, pesquisadora do Observatórios Covid-19 BR e uma das coordenadoras da Rede de Pesquisa Solidária, um grupo multidisciplinar que vem monitorando a elaboração e implementação de políticas públicas na pandemia. Segundo ela, é ilusório imaginar que a experiência dos países desenvolvidos se reproduzirá aqui sem um “esforço radical” de planejamento, comunicação e conscientização da sociedade sobre os riscos envolvidos e o que precisa ser feito para mitigá-los.
“Não estamos trabalhando suficientemente com os pais e as escolas para que isso tenha chance de dar certo”, avalia Lorena, que tem três filhos em idade escolar e escreveu um artigo especial para o Jornal da USP, relatando sua experiência de mãe nessa situação. Na escola da filha mais nova, o professor de Ciências morreu de covid-19 no início deste mês. Ele tinha 39 anos.
“Não se trata apenas de voltar ou não voltar com as aulas presenciais, mas qual é a nossa estratégia de ensino adaptado para a pandemia?”, questiona Lorena. A decisão de reabrir as escolas, segundo ela, não pode ser tomada de forma genérica e atabalhoada, simplesmente transferindo para as escolas a responsabilidade de se adaptar a essa nova realidade por conta própria. “Estamos pedindo que as escolas reabram numa situação muito precária”, diz a pesquisadora. “Além de tudo que elas já fazem, estamos jogando várias outras responsabilidades nas suas mãos, sem que tenha sido feito um planejamento ou os investimentos necessários para isso.”
Trabalhos de modelagem — em que pesquisadores simulam matematicamente o que pode acontecer em diferentes cenários — indicam que a reabertura das escolas pode, sim, contribuir para o aumento da pandemia, segundo o físico Renato Coutinho, professor da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório Covid-19 BR, especializado nesse tipo de análise. Os modelos mostram que o número de contágios e mortes na população aumenta a partir da retomada das atividades escolares e pode disparar a partir de um certo ponto, mesmo com um acréscimo pequeno de alunos. “O ponto onde essa transição ocorre depende muito da condição epidemiológica local” — ou seja, da evolução da pandemia na comunidade do entorno da escola —, afirma Coutinho. “Se você já tem uma curva de casos em ascensão na comunidade, então não existe transição; qualquer abertura escolar aumenta imediatamente o número de casos e óbitos.”
A única maneira de reduzir esse efeito, segundo ele, seria por meio de protocolos rígidos de testagem, rastreamento de contatos e isolamento de casos suspeitos. Ou seja: identificando e isolando rapidamente qualquer pessoa possivelmente infectada dentro da comunidade escolar (pais, alunos, professores e funcionários). “Só que, para isso, precisaríamos testar 10 a 20 vezes mais do que testamos hoje no Brasil”, aponta Coutinho. “Nada do que era preciso fazer para reabrir as escolas sem ter uma explosão no número de casos foi feito”, completa ele. Começando pelo mais básico de tudo: o controle da pandemia.
Efeitos colaterais do isolamento - O outro lado da moeda não é mais animador. Mesmo aqueles que são contra a reabertura das escolas nesse momento reconhecem que o custo de mantê-las fechadas também é alto, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.
“O prejuízo causado pelo fechamento das escolas para as crianças é inequívoco, especialmente quando se prolonga por muito tempo, como atualmente ocorre na maior parte do Brasil. Evasão escolar, impactos cognitivos e pedagógicos, risco de violência, depressão e outros distúrbios da saúde mental, agravos nutricionais, necessidade de abandono do emprego pelos pais para cuidar das crianças, entre outros, se relacionam às graves consequências associadas ao fechamento dos estabelecimentos de ensino”, já dizia a SBP, em setembro do ano passado, quando o fechamento das escolas tinha “apenas” sete meses. “Saliente-se que o retorno às aulas presenciais em um ambiente seguro é de extrema importância para a saúde de crianças e adolescentes.”
O impacto mais óbvio é o do atraso de aprendizado, pelas aulas perdidas, que pode se transformar num prejuízo de longo prazo, ou até mesmo permanente, se o aluno abandonar a escola ou não tiver condições de completar os estudos na idade adequada. Simulações feitas pelo Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados para o Brasil e a África Lusófona (Clear), vinculado à Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP), sugerem que o retrocesso na educação brasileira em função da pandemia pode chegar a quatro anos, principalmente em matemática e língua portuguesa.
O modelo de ensino remoto ajudou a reduzir os prejuízos, mas passou longe de substituir por completo o ensino presencial, em termos de eficiência pedagógica. Um levantamento feito por pesquisadores do Clear e da Rede de Pesquisa Solidária revela que os planos de ensino a distância, em geral, foram “mal desenhados” e tenderam a exacerbar desigualdades sociais preexistentes, em função da dificuldade de acesso das populações mais vulneráveis às tecnologias digitais necessárias. “A maioria dos programas foi introduzida com pouca ou nenhuma preocupação com o acesso às aulas e com a supervisão dos alunos. Por exemplo, a maioria dos planos falhou em oferecer estratégias de interação com professores, supervisão e estímulo à presença”, diz a pesquisa.
Daniel Cara, da USP, acredita que esse prejuízo pedagógico seja recuperável. “Não existe prejuízo irrecuperável na educação”, diz. O prejuízo que mais o preocupa nesse momento, segundo ele, é o “emocional”.
Vários estudos apontam para um aumento nas taxas de depressão entre crianças e adolescentes durante a pandemia, além de outros distúrbios de saúde mental e emocional. “Um dos fatores de risco mais importantes para a depressão é o sentimento de isolamento, de solidão”, diz o médico psiquiatra Guilherme Polanczyk, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental da USP, e chefe da Unidade de Internação do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria, da Faculdade de Medicina da USP.
O convívio social e as experiências vividas na escola, segundo ele, são essenciais para a saúde mental e o desenvolvimento emocional dos jovens. Ao privá-los dessas experiências, é possível que a pandemia se torne uma influência permanente na formação deles, avalia Polanczyk. Ele coordena um estudo para monitorar esse impacto no Brasil, chamado Jovens na Pandemia.
“É uma geração que vai ficar marcada por isso”, diz. Muitos estudos epidemiológicos, segundo ele, mostram que crianças que vivem situações de estresse na infância levam essa experiência para o resto da vida. “O que acontece na infância e na adolescência fica marcado no desenvolvimento emocional das pessoas”, completa o médico. É possível, por exemplo, que muitos desses jovens se tornem mais propensos a desenvolver depressão no futuro, por conta de um efeito cumulativo desencadeado pela pandemia.
Fora das escolas, muitas crianças e adolescentes também ficam mais vulneráveis à violência doméstica e urbana.
“Se a ociosidade já é ruim para qualquer pessoa, imagine para um jovem; é muito pior. Os pais precisam lutar pela volta às aulas o mais rápido possível; não podem se acomodar”, diz o educador Mozart Neves Ramos, Professor Emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto da USP. “A articulação entre as escolas e as famílias é muito importante, todos têm de trabalhar juntos.”
Segundo ele, cabe ao poder público fornecer as diretrizes e as condições necessárias para que esse retorno aconteça de forma segura, levando em conta as características de cada escola e a situação epidemiológica local.
Seja qual for a solução, salienta Mozart Neves, ela precisa valer para todas as escolas, públicas e privadas. Da janela de sua casa, no Recife (PE), ele assiste diariamente aos alunos de dois grandes colégios particulares próximos irem e voltarem das aulas, enquanto que a escola pública ao lado permanece fechada. “Será que o vírus foi só para a escola pública?”, questiona ele. “Cada dia que a gente retarda essa volta, mais a gente aumenta o hiato da desigualdade, reduzindo as oportunidades de futuro para as nossas crianças mais vulneráveis.”
O dilema é global. Lideranças internacionais também vêm fazendo apelos para que as escolas sejam reabertas o mais rápido possível.
“À medida que entramos no segundo ano da pandemia de covid-19 e os casos continuam a aumentar em todo o mundo, nenhum esforço deve ser poupado para manter as escolas abertas ou priorizá-las nos planos de reabertura”, disse a diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Henrietta Fore, em 12 de janeiro. O fechamento de escolas, segundo ela, “deve ser uma medida de último recurso”, só adotada depois que todas as alternativas tiverem se esgotado. “Apesar das evidências esmagadoras do impacto do fechamento de escolas nas crianças, e apesar das evidências crescentes de que as escolas não são motores da pandemia, muitos países optaram por manter as escolas fechadas, alguns por quase um ano”, lamentou ela.
“O custo da pandemia em mortes e sequelas da doença é o maior de nossa história recente. No entanto, o atraso escolar motivado pela ausência de aulas presenciais marcará uma geração de forma profunda com enormes diferenças sociais”, conclui Paulo Lotufo, da USP.
Herton Escobar é jornalista. Artigo publicado originalmente no Jornal da USP de 05/03.
Ilustração: fotomontagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Cecília Bastos/USP Imagens e Agência Brasil