Fepesp - Federação dos Professores do Estado de São Paulo

Por Beth Gaspar em 7 de novembro de 2019

O que a compra de colégio particular revela sobre os rumos da educação

por Maria Carolina Santos *

 

No dia 29 de outubro, pais, mães e responsáveis por alunos do colégio Apoio receberam por e-mail um longo comunicado em que as quatro sócias – todas professoras de formação – comunicavam que o grupo Bahema Educação iria assumir o negócio.

No mesmo dia, o grupo paulista postou no site oficial um comunicado para os investidores sobre a compra de 100% do colégio por R$ 15.792.700,00 – 40% pagos na mesma data e o restante dividido em 36 meses. Entre os primeiros projetos do novo grupo está a ampliação do número de turmas e a criação do ensino médio para 2021.

 

Maria Carolina: escola entregue a grupo de investidores

No mercado há 35 anos, o colégio Apoio [instalado no bairro Casa Amarela, em Recife] tem 1.200 alunos na educação básica, 250 funcionários e trabalha um conteúdo pedagógico baseado no sócio-construtivismo. Não há notas, mas conceitos. Há psicólogos à disposição dos alunos e a inclusão é estimulada. Já a Bahema começou sua história há 66 anos, na Bahia, com Afrânio Affonso Ferreira vendendo máquinas agrícolas.

Filho do fundador, Guilherme Affonso Ferreira fez fortuna investindo mercado de ações. Em 2016, o filho dele, Guilherme Affonso Ferreira Filho, e um sobrinho, Fred Affonso Ferreira, fundaram a Bahema Educação. No ano seguinte, o consultor financeiro Bruno Belliboni se juntou à empresa.

No mesmo ano da fundação, Guilherme Filho foi um os organizadores do 3º Fórum Liberdade e Democracia, que contou com a participação do então deputado federal Jair Bolsonaro e de um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), Fábio Ostermann. A partir de 2017, a Bahema Educação passou a comprar escolas com alta credibilidade, muitas delas reconhecidas pela educação inclusiva e progressista. A cada compra, a participação de Guilherme no Fórum vinha à tona e gerava polêmica (e indignação) entre pais e alunos.

Foi assim com a aquisição das escolas da Vila e Parque, no Rio de Janeiro, e do Balão Vermelho, em Belo Horizonte. Quando a venda do Apoio foi anunciada, muitos responsáveis pelos alunos da escola se sentiram traídos. Em conversa com a reportagem da Marco Zero, um questionamento era comum: Como uma escola tão progressista estava sendo entregue a um grupo de investidores supostamente apoiadores de uma política tão retrógrada?

[Nota: a Bahema também comprou, em São Paulo, as escolas da Vila e Viva,
em processo semelhante à aquisição do colégio Apoio de Recife.]

O comunicado da venda já avisava aos pais que o colégio estava pronto para esclarecimentos. Foram três reuniões. Guilherme Affonso Ferreira Filho participou de todas e foi questionado sobre suas inclinações políticas. Descrito como simpático e educado, Guilherme se definiu, então, como um “libertário”. Em entrevista por e-mail à Marco Zero Conteúdo, Guilherme afirmou que “libertário, ao pé da letra, significa acreditar na liberdade absoluta. Não sou de “direita” nem “esquerda”, sou humanista, acredito na liberdade de escolha e respeito a todos”.

 

Venda de colégio: pais temem que escola vire mercadoria

Pais e mães ouvidos pela Marco Zero têm receio que o Apoio se transforme em apenas uma mercadoria, podendo ser trocada, vendida e mudada de acordo com seus resultados financeiros. “Não nos associamos às escolas para mudar seu DNA, muito pelo contrário, queremos perenizar os projetos pedagógicos de cada uma delas com gestão profissional. Mas a escola precisa dar lucro”, se defende Guilherme.

Os colégios de metodologia progressista adquiridos pela Bahema nestes últimos dois anos foram abarcados em um subgrupo chamado Critique. O comando pedagógico dessas escolas butiques – de médio porte e com alto conceito – estarão a partir de 2020 sob a tutela de Sônia Barreira, professora que foi uma das fundadoras da escola Vila.

 

O grupo leva a marca - Em todas as escolas que adquiriu o grupo Bahema Educação teve mais ou menos o mesmo modus operandi. A escolha é por escolas bem conceituadas, progressistas e, muitas vezes, sem sucessão natural. Há um contrato com os antigos proprietários para que continuem como gestores pedagógicos por determinado período, enquanto a Bahema assume a administração e o financeiro. O grupo não compra estruturas físicas: leva a marca, o programa pedagógico e a carteira de estudantes.

No caso do Apoio, as quatro sócias não tinham sucessores entre familiares. Duas delas, Lillian Clark e Ceça Gomes, após quase 40 anos de trabalho, queriam se aposentar. As negociações com o Bahema transcorreram em sigilo.

As duas sócias que permanecem são Rejane Maia e Terezinha Cysneiros, que agora receberão um salário da Bahema pela coordenação pedagógica. Devem permanecer por, pelo menos, mais quatro anos à frente da escola. “Está determinado por contrato”, explica Rejane. Dos sete imóveis onde o Apoio funciona, no bairro de Casa Amarela, apenas dois pertencem às sócias. A partir de 2020 estarão todos alugados à Bahema Educação.

 

Experimentos para abocanhar recursos públicos - O que interessa na venda do colégio Apoio ao grupo Bahema não é tanto o receio de responsáveis e alunos de que o a instituição mude seu projeto pedagógico. Há uma questão bem mais ampla: a compra explicita um recente movimento no mercado da educação privada que pode ameaçar o desenvolvimento da educação pública brasileira.

 

Celso Napolitano: "A educação vai depender da bolsa de valores".

Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, Celso Napolitano é um pesquisador do mercado da educação. Se, até poucos anos, atrás era a universidade privada a menina dos olhos do empresariado – e que fez a fortuna de muitos, apoiados em programas como o Fies e o ProUni – hoje a aposta para mina de ouro é a educação básica.

Uma frase e uma transição são citadas pelo professor para marcar essa virada.

A frase é a do presidente do maior grupo educacional brasileiro, o Kroton, avaliado em mais de R$ 17 bilhões, Rodrigo Galindo. Em 2015, ele disse algo como “o ensino superior tem cliente cativo por 4 anos. No básico, o cliente é cativo por 12 anos”.

“Mudar o filho de escola é sempre um processo difícil, porque é retirar uma criança, um adolescente do seu meio de convívio social. Em escolas progressistas, como as que a Bahema vem comprando, tem um fator a mais. Muitos pais participam de grupos, presenciais e virtuais, e há uma conexão de amizade também entre os adultos. Tirar a criança da escola é quebrar esses laços”, diz Napolitano.

A transição foi quando, em 2017, o bilionário libanês Chaim Zaher vendeu sua parte no grupo Estácio por R$ 430 milhões e investiu boa parte disso na aquisição de escolas da educação básica.

 

Estratégias dos grandes grupos - Os grandes grupos de educação estão atuando com estratégias parecidas nos últimos anos. Investem primeiramente em escolas conceituadas e com projetos pedagógicos fortes. São escolas para a classe média alta, com ticket médio entre R$ 1,5 e R$ 2 mil. É a faixa, por exemplo, do Apoio. Em seguida, usam a expertise das escolas butiques para fundarem escolas mais acessíveis, com mensalidades abaixo dos R$ 600, localizadas em bairros populares.

É o que Zaher vem fazendo desde o ano passado, com planos de ter 25 escolas e 30 mil alunos com mensalidades em torno dos R$ 400. A Bahema Educação está tocando projeto semelhante com a Escola Mais, na Zona Leste de São Paulo.

É nessas escolas que se encontra não só um negócio lucrativo em si, mas também a promessa para algo maior. Para o professor Celso Napolitano, é uma experiência para que, em um futuro próximo, essas empresas privadas possam conseguir oferecer aos governos estaduais e prefeituras um modelo em que seja mais barato – ou a mesma coisa – pagar a escola privada ao invés de investir no ensino público. Seria, então, a privatização do ensino público no Brasil.

 

Governo defende sistema - Essa prática já foi inclusive apoiada pelo ministro da economia Paulo Guedes como uma solução para a educação pública, ao citar o sistema de vouchers, adotado no Chile durante o governo de Pinochet – e reformulado e questionado a partir da década de 1990. Mês passado, o presidente Jair Bolsonaro voltou a defender o sistema.

No Brasil mesmo, há três anos este modelo está sendo utilizado provisoriamente para creches, desde que uma Emenda Constitucional começou a valer e incluiu a educação infantil na educação básica. Como mostra esta reportagem do projeto Colabora, o Distrito Federal, Salvador e algumas cidades do Rio Grande do Sul usam ou usaram o modelo de vouchers para tapar a brecha da falta de creches públicas.

Para Guilherme Affonso Ferreira Filho, o sistema de vouchers é “um modelo que vale a pena testar. Não temos um modelo fechado nem uma solução mágica para melhorar a educação nem vamos ficar esperando o governo se mexer. Mas estamos testando e aprendendo. O voucher é um modelo pouco utilizado no mundo e ainda existem dúvidas sobre sua eficácia”, disse.

Nas reuniões com pais, mães e responsáveis pelos alunos do Apoio, Guilherme afirmou que vê a educação privada como a solução para a educação pública brasileira. Questionado pela Marco Zero como se daria isso, ele respondeu que “infelizmente, o governo já mostrou que não é capaz de prover educação básica de qualidade a, aproximadamente, 50 milhões de crianças e jovens brasileiros. Há exceções mas na maioria das vezes a educação básica pública não é boa”.

Os ganhos que os grandes grupos investidores podem ter no setor da educação pública não se restringe, claro, ao sistema de vouchers.

“São muitos negócios que podem ser feitos. Como o oferecimento de apostilas, livros, educação à distância. Recentemente, o grupo Kroton se dividiu em quatro empresas para dar conta dessas operações”, conta o professor Celso Napolitano.

Em linhas gerais, os grupos educacionais estão em um momento de apostas. “Se vier o voucher, nessa linha liberalizante, o mercado está se preparando para isso, mostrando que tem um projeto educacional importante. A compra de escolas com projetos progressistas está dando um verniz a esse projeto”, explica.

“Para o poder público teoricamente parece que resolve: ao invés de você fazer comida, você compra um lanche fora. Em termos de projeto educacional de um país, a gente vai ficar nas mão dos grandes investidores e a educação vai depender da bolsa de valores. O projeto vai ter sentido enquanto houver lucratividade”, alerta Napolitano.

 

*  Maria Carolina Santos escreve no site de jornalismo investigativo Marco Zero

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