Não volto às notícias da pobre menina pobre violentada. Sabemos o que nos embrulha o estômago, tal como o sadismo e a desumanidade de um grupo de malucos, que enluta esta sociedade já tão empobrecida e cínica. Porém, por que o aborto é assim tratado? Por que tanto ódio e debates ideológicos a ponto de gritarem “assassina” e de religiosos intolerantes rejeitarem o procedimento legal que salvaria a vida dela?
Do ponto de vista psicanalítico, o tema é nitroglicerina pura e, multifacetado, está inserido em nosso inconsciente, em terrenos minados: mexe com nossos fantasmas, nossas culpas, fantasias, vergonhas, com desejos sádicos, com ambivalências e contradições.
Não adianta sermos contra ou a favor, porque, assim debatido, nascerão mil argumentos e poucas conclusões. O que segura o debate é que o Estado não é laico. Não é! Difícil, hein?
Não há aborto, há abortos, cada qual em suas circunstâncias! Há abortos no Brasil, na Europa, nos EUA, para pobres, ricas, brancas, pretas, maiores ou menores de idade, permitidos ou clandestinos.
Pensemos nas Religiões, dimensão capital para os brasileiros. A Católica vive um transtorno obsessivo-compulsivo: é pecado, é pecado, é pecado, crime hediondo, inclusive para a menina que tinha direitos legais. As Neopentecostais nada discutem, pois desta cartola não sairão dízimos ou milagres, dentre outras obstinações impuras destas instituições religiosas sectárias.
A nossa desgraça será o avanço dos fundamentalistas!
No Brasil machista, mulher não ‘faz’ aborto, ‘comete’ um. Assim, é tida como criminosa e sente-se envergonhada. Por isto, vejo pacientes que abortam sem contar para os pais ou maridos…
As Ciências estão longe de chegar a um consenso quanto ao ‘início’ da vida humana; talvez nunca saberemos! Contudo, a Igreja Católica já equacionou tudo, afirmando que há alma no embrião; ela adora discutir sobre a existência ou não da alma, tanto que passou muito tempo, afirmando que os índios não a tinham… Difícil, hein?
No Brasil, foi a partir dessa moral Cristã que se deu a incriminação da mulher que aborta. Fato. Não aprecio nem essa “moral seletiva”, tampouco esse Deus que castiga e castiga e castiga.
A ‘culpa católica’ não me convence mais. Aprecio um pobre que nasceu em Nazaré. Uma vez, criticou os seus amigos dizendo: “deixai vir a mim as criancinhas… e tudo o que fizerdes a uma delas é a mim que estarão fazendo”. Assim, por Sua lógica, no caso da menina em questão, é justo pensar que, mais do que simbolicamente, estupraram o próprio Jesus Cristo.
Paulo Ronca é Professor Doutor em Psicologia Educacional – UNICAMP e Psicanalista – IPLA. Há 50 anos é diretor do Instituto Esplan, onde, com uma equipe multidisciplinar, atende crianças, jovens e adultos que necessitem de uma atenção especial e individual no que diz respeito ao processo de desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Artigo publicado originalmente em https://pauloronca.blog/