Rafael, 7, mal chegava na escola e já corria para combinar o jogo de bafo com os colegas. Na roda de boas-vindas, não conseguia esperar sua vez para contar o que tinha feito no fim de semana. Era ávido pelos olhares e elogios vindos dos professores, qualquer pista de que fosse considerado inteligente e querido. O intervalo passava voando, com a pressa de brincar e a torcida para que os pais tivessem colocado alguma surpresa no lanche. Quando batia o sinal, corria para os braços de quem o buscasse, suado e cheio de novidades para contar. Dormia no caminho de volta para casa, tão exausto que estava. Ao longo do dia, quase sem perceber, aprendia a ler, escrever, contar, refletir, responsabilizar-se.
Com o isolamento social forçado, sua experiência escolar reduziu-se a horas intermináveis diante de uma tela plana, da qual emergem figuras bidimensionais embaçadas e vozes metálicas de colegas e professores. Os pais a seu lado tentam ajudá-lo, mas eles mesmos estão constrangidos de participarem das atividades do filho, assim como os professores sob seus olhares. Lamentam o tempo gasto com as aulas, que concorre com o trabalho remoto, com o cuidado da casa e de si mesmos. A escola cobra a mensalidade para bancar funcionários e instalações que estarão lá quando Rafael voltar, mas a renda da família caiu consideravelmente. Pais, professores e alunos estão visivelmente cansados, somado ao luto pela perda de parentes e amigos.
A festa junina virtual foi a gota d'água de "non sense". Tanto esforço dos adultos e a criança parecia alheia à tarefa de fazer bandeirinhas.
Rafael é um estudante privilegiado, exemplos mais realistas deveriam incluir o fato de que 4,8 milhões de alunos brasileiros nem sequer têm acesso à internet.
Uma vez que a nós coube encarar uma das maiores crises sanitárias, sociais, econômicas e políticas dos últimos cem anos, o que pensar disso?
Primeiro, que o que se passou a chamar erroneamente de "homeschooling" nada mais é do que um ensino emergencial, basicamente, um arremedo alçado à categoria de panaceia. Até o ensino médio, a escola não é redutível ao virtual, embora deva se beneficiar de alguma hibridez.
Balizar a aprendizagem infantil com a produtividade do home office nos dá a dica do rumo canhestro no qual algumas propostas de "educação" se baseiam. É o neoliberalismo fazendo escola.
Professores --que muitas vezes também são pais de alunos-- têm tido um comportamento louvável e têm adoecido na tentativa de se adaptarem à experiência virtual compulsória, para a qual não foram treinados ou contratados. Devemos toda nossa gratidão e atenção a eles.
Em 1918, as escolas fecharam e houve aprovação automática. Agora, urge que reflitamos sobre metas realistas e alcançáveis para o nosso tempo. Se as crianças conseguirem manter o que já sabiam, estaremos no lucro, mas, obviamente, essa não será a regra.
Mesmo os adolescentes, mais cognitivamente aptos ao ensino remoto, padecem de solidão e desmotivação pela falta do ambiente social. Cada comunidade de ensino --pais, professores, alunos, escolas e Estado-- deve pesar o real sentido da educação em suas vidas, ou ainda, o real sentido da vida em seu projeto educativo.
Fingir que o ano escolar de 2020 foi igualmente válido para todos os alunos é alçar a indiferença à categoria de política educacional. A única lição válida e possível a ser tirada por crianças e adultos neste ano seria de solidariedade, cidadania e luto. O resto é negacionismo e oportunismo.
Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP, é autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". Artigo originalmente publicado em Folha de S. Paulo, 07/07/20.