“E daí?”, diria o rei nu, aquele da gripezinha, o que minimiza as mortes pela pandemia, o que não é coveiro, aquele que de fato jamais gestou o país com responsabilidade social, nem antes e muito menos durante o que estamos vivendo atualmente, com mais 1 milhão de infectados e cerca de 50 mil mortos pela covid-19.
O presidente Jair Bolsonaro manteve-se atento ao fio do seu primeiro pronunciamento em rede nacional, mostrando sempre a indiferença e o desdém diante da gravidade do que o mundo está vivenciando, e exibindo uma sordidez vaidosa e operante, numa fala às vezes mais mansa, ou desconectada, ou ruidosa, mas não menos perversa.
É como se os meses passassem, mas a situação estivesse nitidamente congelada, impedindo qualquer avanço no sentido de modificar o “status” nacional de país vira-lata e inconsequente. Ao contrário do controle e da responsabilidade esperados perante as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros órgãos competentes, o Brasil segue adotando equivocadamente ações e medidas similares aos EUA, que padecem de desgoverno semelhante.
Parece inimaginável, embora também simbólico, que estejamos entrando no terceiro mês de alerta máximo no que diz respeito a uma crise sanitária de nível mundial e que, no Brasil, a política econômica ultraliberal e o negacionismo científico sejam as forças que conduzem as ações do governo federal.
Vemos uma sociedade refém de um processo antidemocrático que induz os trabalhadores — e não só eles, mas todos os cidadãos — a repensar e, muitas vezes, pactuar com o slogan do “mercado”, isto é, que seria de alguma forma melhor morrer de covid-19 do que morrer desempregado. O fato persistente é que hoje temos políticas que simplesmente desmantelaram em grande parte as relações de trabalho, com o apelo fortíssimo da pandemia sendo usado como pano de fundo de uma ordem que já estava dada por esse governo anteriormente ao estado de emergência sanitária: a ordem da privatização total dos serviços públicos e do desmonte das relações de trabalho e dos direitos trabalhistas.
Na condução das políticas públicas e sociais, uma sucessão de desastres. Temos um Ministério da Saúde sem ministro, tutelado por alguém que não é da área. A pasta da Cultura, que contou com a aspirante à secretária Regina Duarte, hoje protagoniza um show de horrores.
No meio de prisões e acertos de bastidores regados a suco de laranja que envolvem escândalos ligando diretamente a família de Jair Bolsonaro, anuncia-se a nomeação do ator Mário Frias, nascido nas tramas da novelinha juvenil “Malhação”, para uma pasta tão prioritária quanto saúde e educação, haja vista a relevância do nosso patrimônio histórico e da arte como fonte de vida, de luta, de sonhos e de poesias, sem as quais que ninguém vive. O novo secretário não será menos descartável que sua antecessora — e lá se vão grandes projetos que continuarão estagnados.
Por sua vez, na educação, resta-nos hoje esperar o que de pior pode vir para a condução do MEC.
Com o ex-ministro Abraham Weintraub tentando desesperadamente, como o típico olavista que é, “fugir” do país, o império desmorona, mas sua herança é cruel. Afinal, o ex-ministro metido a valentão, que no fundo não passa de um ignorante prepotente e desqualificado, não desenvolveu qualquer política educacional consciente e consistente para o país. Ao invés disso, todas as suas ações à frente do MEC foram para desmantelar a educação pública e regimentar um leque de desigualdades que só ampliaram o abismo social e prestaram um desserviço à sociedade brasileira.
Como se não bastassem todas as declarações coronelistas de que as políticas de acesso eram só para a elite branca — como, por exemplo, sua postura em relação ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) —, o último ato de Weintraub, para encerrar sua passagem pelo ministério, na manhã do último dia 18, foi revogar a portaria sobre políticas de inclusão na pós-graduação, que incluíam acesso de negros, indígenas e pessoas com deficiência.
Seria interessante, mesmo dentro desse contexto, alinhar e minimamente lembrar que é contraproducente comemorar. A pergunta que não quer calar é: para onde caminha a educação?
A educação deveria estar respirando aliviada, mas o que se espera, na verdade, é saber que rumos o país vai tomar quanto à política geral, porque o fato é que nenhuma pasta neste desgoverno tem autonomia para absolutamente nada. Observamos, por vezes apáticos, a máquina governamental se inchar de militares à frente de pastas, órgãos e setores importantes para a condução do país, ao mesmo tempo em que não há linha de ação com autonomia para nenhuma construção de um debate mais amplo e democrático por dentro deste governo. No âmbito educacional, os principais autores deste cenário simplesmente são descartados: estudantes, pais, professores, trabalhadores da educação, sociedade civil.
De maneira impiedosa, não se dá voz aos que devem falar e defender realmente o fortalecimento da educação.
Estamos a um passo de um abismo social e educacional, com políticas voltadas cada vez mais para a privatização, a militarização e o amordaçamento do magistério. Há de se levar em consideração, contudo, o alerta de Friedrich Nietzche de que, quando olhamos muito tempo para um abismo, o abismo olha para nós. Sendo assim, vamos compreender que não podemos aceitar exclusivamente contemplar o vazio a ponto de que o abismo nos olhe de volta e nos torne tão vazios quanto ele. Como diria o aniversariante de 19 de junho, o grande Chico Buarque, “amanha há de ser outro dia… Inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria”.
*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee
charge: blog da Denise, Correio Braziliense de 16/06/20