A pandemia do capital tratou de demonstrar sua impostura: “colaboradores” estão sendo demitidos aos milhares, “parceiros” estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego e os pequenos empreendedores não encontram consumidores e veem sua renda se esvanecer.
Não bastasse a recessão econômica global e em curso acentuado no Brasil, já visualizávamos no radar sinais de expressivo aumento dos índices de informalidade, precarização e desemprego, quer pela proliferação de uma miríade de trabalhos intermitentes, ocasionais, flexíveis etc., quer pelas formas abertas e ocultas de subocupação, subutilização e desemprego, todos contribuindo para a ampliação dos níveis já abissais de desigualdade e miserabilidade social.
Paralelamente a esse quadro social crítico, o léxico empresarial que se expandia no universo maquínico-informacional-digital estampava muita pomposidade: platform economy, crowd sourcing, gig-economy, home office, home work, sharing economy, on-demand economy, entre tantas outras denominações, sem esquecer que os altos gestores (outrora presidentes e diretores das grandes corporações) foram renomeados como chief executive officer (CEO). Até o coaching foi inventado, afinal seria preciso alguém que ganhasse um bom cacau para realizar algum afago espiritual.
E esse novo palavrório, propalado pela gramática do capital, somou-se àquele já consolidado e que adulterava os reais significados etimológicos das palavras, que todos conhecemos: manter sempre a resiliência, atuar com muita sinergia, converter-se em autêntico colaborador e em verdadeiro parceiro, vangloriar-se da nova condição de empreendedor, exercitar o trabalho voluntário (em verdade uma “sutil” imposição, visto que o voluntariado se tornou condição sine qua non para obtenção de emprego), entre tantos outros vitupérios à linguagem, que lhe imputam novas “significações”.
Mas o inesperado fez essa fumegante nomenclatura, que parecia tão bela, virar pura balela. A pandemia do capital tratou de demonstrar sua impostura: “colaboradores” estão sendo demitidos aos milhares, “parceiros” estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego e os pequenos empreendedores não encontram consumidores e veem sua renda se esvanecer.
É bom recordar, porém, que mesmo antes da explosão da pandemia a realidade cotidiana do labor já vinha expressando um inteiramente outro: pejotização, trabalho intermitente, subocupação, subutilização, infoproletariado, cibertariado, escravidão digital, professor delivery, frila fixo, precári@s inflexíveis etc., terminologia essa que, com tom irônico e crítico, se originou da própria lavra do trabalho. É por isso que uberização tem hoje o mesmo traço pejorativo que walmartização ostentou quando se falava das condições de trabalho nos hipermercados.
Se esse ainda era o cenário no Natal de 2019, com Trump, Bolsonaro, Orban e outras aberrações assemelhadas, tudo começou a se agravar com o advento da pandemia. Com a propagação global do coronavírus, o que era desanimador se tornou desolador. E a crise econômica que atingia duramente o Brasil passou a ser amplificada pelas crises do governo Bolsonaro-Guedes, uma simbiose nada esdrúxula entre concepções ditatoriais e fascistas e uma variante de neoliberalismo primitivo, devastando ainda mais nosso chão social já bastante desertificado.
Alguns dados estampam essa crueza. Na mensuração referente ao primeiro trimestre de 2020, o IBGE apresentou uma intensificação das condições desumanas da classe trabalhadora: atingimos o contingente de 12,9 milhões de desempregados, e a informalidade (flagelo que se tornou leitmotiv da ação do capital) superou a casa de 40%, com cerca de 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras à margem da legislação social protetora do trabalho.
Vale ressaltar que esses dados não refletem o que vem se passando no presente (segundo trimestre), dada a expansão exponencial da pandemia no Brasil, mas tão somente o pouco que era visível até os primeiros dias de março, visto que o desemprego (tanto aberto quanto aquele por desalento) está em grande medida invisibilizado pela paralisação de amplos setores da economia, permitindo tão somente uma aproximação sintomática da realidade. Se a esses dados incluirmos os subocupados (que trabalham menos de 40 horas) e os subutilizados (que segundo o IBGE englobam tanto os subocupados como os desocupados e a força de trabalho potencial),1 teremos uma ideia mais precisa do tamanho da tragédia social que não para de se amplificar no país que em fins de maio se encontra no epicentro da pandemia.
Muito distante de um vírus cuja responsabilização se devesse a algum desmando da natureza, tão ao gosto da apologética da ignorância que hoje se esparrama aqui e alhures, o que estamos presenciando, em escala global, é resultante da expansão e generalização do sistema de metabolismo antissocial do capital.
Carregando uma lógica essencialmente destrutiva, esse metabolismo só pode viver e se reproduzir por meio da destruição, seja da natureza, que jamais esteve em situação tão deplorável, seja da força de trabalho, cuja derrelição, corrosão e dilapidação se tornaram absolutamente insustentáveis. Sendo expansionista e incontrolável, desconsiderando a totalidade dos limites humanos, societários e ambientais, o sistema de metabolismo antissocial do capital alterna-se entre produção, destruição e letalidade.
Senão, o que significa a enorme pressão de amplas parcelas do empresariado predador que exige junto ao governo-de-tipo-lúmpen2 a imediata volta ao trabalho e à produção, em meio à explosão de mortes que não param de crescer por conta da pandemia? Será para preservar os empregos, como dizem?
A resposta é de singela clareza e está estampada não só no país, mas em todos os rincões do mundo. Da China à Suécia, da Alemanha à África do Sul, da Índia aos Estados Unidos, da França ao México, do Japão à Rússia, com a eclosão da pandemia do capital, a criação de riqueza e de lucro se estancou, dada a paralisação da produção, com exceção das chamadas atividades essenciais (aliás, ao ampliar ou restringir essa definição, cada governo estampa seu nível de maior sujeição e servilismo ao capital).
Como as corporações globais sabem melhor do que ninguém que a força de trabalho é uma mercadoria especial, uma vez que é a única capaz de desencadear e impulsionar o complexo produtivo presente nas cadeias produtivas globais que hoje comandam o processo de criação de valor e de riqueza social, os capitais aprenderam bem, ao longo destes quase três séculos de dominação, a lidar com (e contra) o trabalho.
Sabedores de que, se efetivassem a completa eliminação do labor, eles se veriam na incômoda posição de extinguir seu próprio ganha-pão, sua alquimia diária, cotidiana e ininterrupta está voltada indelevelmente para reduzir ao máximo o trabalho humano necessário à produção. E assim se faz por meio da introdução compensadora do arsenal maquínico-informacional-digital disponível, ou seja, pelo uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC), “internet das coisas”, impressão 3D, big data, inteligência artificial, tudo isso enfeixado, em nossos dias, na mais do que emblemática proposta da indústria 4.0.
Que esse complexo tecnológico-digital-informacional não tenha como finalidade central os valores humano-sociais, isso é mais do que uma obviedade. Ou será que alguém acredita que a guerra entre a norte-americana Apple e a chinesa Huawei tenha como principal objetivo melhorar substantiva e igualitariamente as condições de vida e trabalho dos bilhões de homens e mulheres, brancos, negros, indígenas, imigrantes, que perambulam entre o desemprego, subemprego, informalidade e intermitência? Alguém pode imaginar que o objetivo das grandes corporações globais seja dar-lhes trabalho digno, salários justos, vida dotada de sentido, atendimento pleno de suas necessidades materiais e simbólicas?
Um breve olhar para as condições de trabalho da terceirizada global Foxconn, em suas unidades na China onde produz a marca Apple, nos revelou dezessete tentativas de suicídio em 2010, das quais treze lamentavelmente se concretizaram. Podemos lembrar também as rebeliões contra o famigerado “sistema 9-9-6”, praticado pela Huawei (e tantas outras empresas chinesas do ramo digital, como a Alibaba), que significa trabalhar das 9 às 21 horas (9 horas), seis dias por semana. Fácil, não?
Mas, se assim caminhava o admirável mundo do trabalho antes da explosão do coronavírus, o que está sendo gestado no presente, em plena pandemia do capital? Quais experimentações do trabalho estão sendo maquinadas nos laboratórios do capital, enquanto uma parte expressiva da classe trabalhadora preenche os túmulos que, a céu aberto, estão acolhendo seus corpos?
Utilizando-se ilimitadamente da informalidade, flexibilidade, precarização e desregulamentação, traços marcantes do capitalismo no Sul global (e que se expandem intensamente também no Norte), coube às grandes plataformas digitais e aplicativos, como Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Facebook, Airbnb, Cabify, 99, Lyft, iFood, Glovo, Deliveroo, Rappi etc., dar um grande salto pela adição das tecnologias informacionais.
E aqui os algoritmos se destacam, visto que são programas cuidadosamente preparados para processar imenso volume de informações (tempo, lugar, qualidade), capazes de conduzir a força de trabalho segundo as demandas requeridas, dando-lhes a aparência de neutralidade.3 Juntamente com a inteligência artificial e todo o arsenal digital canalizado para fins estritamente lucrativos, isso vem possibilitando a criação de um novo monstrengo que adultera a concretude e efetividade das relações contratuais vigentes. Os trabalhos assalariados transfiguram-se em “prestação de serviços”, o que resulta em sua exclusão da legislação social protetora do trabalho. Impulsionados pelo ideário da empulhação, que os fazia sonhar com um “trabalho sem patrão”, converteram-se no que, em O privilégio da servidão, denominei escravidão digital.
Realizando jornadas de trabalho frequentemente superiores a 8, 10, 12 ou mais horas por dia, muitas vezes sem folga semanal; percebendo salários baixos e que estão sendo subtraídos durante a pandemia, sem explicação por parte das plataformas digitais; padecendo das demissões sem nenhuma justificativa; tendo de arcar com os custos de manutenção de veículos, motos, celulares e equipamentos etc., começamos a desvendar, nos laboratórios do capital, os múltiplos experimentos que pretendem implantar depois da pandemia, que se pode assim resumir: exploração e espoliação acentuadas e nenhum direito do trabalho.
Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom, teremos mais informalização com informatização, “justificada” pela necessidade de recuperação da economia pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma monumental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira essa tendência destrutiva do capital pós-pandêmico.
Há ainda outros exemplos ilustrativos das experimentações do capital em curso. A simbiose entre trabalho informal e mundo digital vem permitindo que os gestores possam sonhar com trabalhos ainda mais individualizados e invisibilizados. Ao perceberem que o isolamento social realizado durante a pandemia vem fragmentando a classe trabalhadora e assim dificultando as ações coletivas e a resistência sindical, eles procuram avançar na ampliação do home office e do teletrabalho. Desse modo, além da redução de custos, abrem novas portas para uma maior corrosão dos direitos do trabalho, acentuando a desigual divisão sociossexual e racial do trabalho e embaralhando de vez o tempo de trabalho e de vida da classe trabalhadora.4
Os bancos, que exercitam uma pragmática de enorme enxugamento há décadas, uma vez que têm se utilizado intensamente do arsenal digital, já devem estar fazendo os cálculos de quanto vão lucrar com a introdução do home office e do teletrabalho.
Vale, por fim, destacar outro exemplo que tem sido emblemático: o EAD (ensino a distância). Essa prática, que vem se intensificando durante a pandemia, tanto no ensino privado como no público e especialmente nas faculdades privadas, além de objetivar a redução dos custos e aumentar os lucros, visa fortalecer grandes conglomerados privados “educacionais”. Recentemente, como noticiou amplamente a imprensa, a Laureate, que congrega várias faculdades privadas, além de utilizar robôs na correção de trabalhos sem conhecimento dos alunos, demitiu mais de uma centena de professores.
Assim, por meio desses e de outros mecanismos, novas modalidades de corrosão do trabalho vêm ganhando forte impulsão durante a pandemia e se ampliando nas mais diversas atividades econômicas, invadindo também o espaço público e as empresas estatais. Poucas semanas atrás, o CEO da Petrobras somou-se ao coro ao dizer que a estatal pode “trabalhar com 50% das pessoas em casa” e assim “liberar vários prédios que custam muito”.5 Vale recordar que, logo antes da eclosão do coronavírus, houve uma importante greve nacional dos petroleiros.
Em meio a tanta maquinação, imaginar que o apoio de R$ 600 (por três meses) para os que se encontram na informalidade seja suficiente para reduzir o flagelo e o vilipêndio a que estão submetidos só é possível para um governo que pratica a necropolítica e a necroeconomia, o que o levou a “descobrir” que existem mais 40 milhões de trabalhadores/as invisíveis, dura constatação do principal resultado de sua política genocida.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho na Unicamp. Acaba de publicar Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (e-book, Boitempo, São Paulo, 2020) e uma nova edição atualizada de O privilégio da servidão (Boitempo, 2020). Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.
1 Ver Ricardo Antunes, Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (e-book), Boitempo, São Paulo, 2020.
2 Conforme Ricardo Antunes, Politica della caverna, Castelvecchi, Roma, 2019.
3 Conforme Vitor Filgueiras e Ricardo Antunes, “Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo”, Contracampo, Niterói, 2020.
4 Sobre home office, teletrabalho e seus usos e abusos, ver Ricardo Antunes, Coronavírus…, op. cit.
5 Juliana Estigarribia, “‘Podemos trabalhar com 50% dos funcionários em casa’, diz CEO da Petrobras”, Exame, 15 maio 2020.