Lilia Schwarcz é uma historiadora e antropóloga brasileira com irrefutável consistência acadêmica. Professora titular da Universidade de São Paulo, já chegou a ganhar o Prêmio Jabuti por uma obra que fala sobre a vida de Dom Pedro II, em 1999.
No livro Sobre o autoritarismo brasileiro (Cia. das Letras, 2019), Lilia agora discute racismo, violência e autoritarismo no país, pensando de modo arqueológico em como essas características fundaram o imaginário de nossa sociedade. Pensa o nosso passado colonial, o mito da democracia racial, desigualdade de gênero, patrimonialismo, até desembocar no pós-eleições de 2018 e a vitória de um líder da extrema-direita.
"Precisamos entender essa ascensão autoritária brasileira como uma queda, uma redução da noção de Res Pública, de coisa pública. É ainda uma resposta ao assombro que vivemos em 2018. Como explicar que o que está subindo ao poder, por mais truculento que possa parecer, foi escolhido por nós? Foi feita nossa vontade. É como se nos últimos meses, o Brasil tivesse aberto uma porta perigosa, que revela sentimentos e pensamentos muito contrários à Democracia. Se, no passado próximo, havia certo constrangimento em defender ideias assim, hoje, ao contrário, valores autoritários, ligados àquela herança que tentamos negar, estão autorizados a circular por aí. E o governo atual não só autoriza, como incentiva tal prática", responde a pesquisadora à revista.
Uma sociedade autoritária
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Um adolescente negro, franzino, 17 anos, acusado de tentar roubar uma barra de chocolate, é brutalmente torturado e chicoteado. Nas costas – e na alma – ficam as marcas dos açoites. Jamais serão apagadas. O episódio, grotesco, bárbaro, a lembrar os horrores dos tempos da escravidão no país, aconteceu em agosto de 2019, numa unidade do supermercado Ricoy localizada na zona Sul de São Paulo. O vídeo com as cenas horrendas viralizou nas redes sociais – e, o mais assombroso, foi gravado pelos algozes do rapaz, seguranças do mercado que, sádicos, se divertiam com as chibatadas e o espancamento.
Vale lembrar: não é um caso isolado. O racismo, em suas mais diferentes, violentas e cotidianas manifestações, é traço determinante de formação da sociedade brasileira. “Sempre fomos autoritários”, defende Lilia Schwarcz, autora do livro Sobre o autoritarismo brasileiro, lançado recentemente pela Companhia das Letras. A obra, feita a pedido da editora, tenta refletir justamente sobre nosso passado colonial violento, suas heranças perversas e o mito da democracia racial, trazendo à tona também temas como patrimonialismo, machismo, desigualdades sociais e corrupção, para desmontar a tese do “homem cordial” e revelar uma sociedade profundamente autoritária. E que agora encontra respaldo institucional para manifestar publicamente, sem constrangimentos ou freios, todos os seus preconceitos e ódios.
O livro ajuda a compreender o momento histórico que estamos enfrentando. “Vivemos uma democradura, um governo autoritário levado ao poder pelo voto democrático, um valor que o próprio governo não defende”, analisa Lilia. Para ela, é tempo de fazer chegar à sociedade, de forma mais ampla, essas reflexões e as propostas para enfrentar o autoritarismo. “Tenho defendido que é nosso dever fazer o conteúdo chegar para amparar e fomentar a discussão. Só o diálogo trará caminhos mais frutíferos e menos ressecados, como o que vivemos”, completa.
A reportagem da Giz conversou com exclusividade com a autora e traz aqui os melhores momentos da entrevista.
Como foi o processo de produção e organização do livro?
Ele nasceu de uma encomenda da Companhia das Letras, minha editora, que queria discutir com alguma celeridade algumas questões ligadas aos nossos traços constitutivos. Quem viveu no Brasil nos últimos vinte anos está com muita dificuldade em entender como e por que estamos vivendo hoje sob o domínio de uma democradura, onde o grande chefe, que despreza as instituições democráticas abertamente, chegou ao poder através de uma eleição democrática e legítima. E não estamos sozinhos nesse retorno a tempos mais autoritários. A Rússia, a Turquia e a Hungria parecem estar experimentando a mesma situação: governos autoritários que chegaram ao poder através de pleitos corretos. O mesmo vale para Venezuela e Filipinas também. Eu queria entender esse processo. Quais as razões que levam o cidadão a eleger Jair Bolsonaro?
Como entender essa ascensão do autoritarismo?
Precisamos entender essa ascensão autoritária brasileira como uma queda, uma redução da noção de Res Pública, de coisa pública. É ainda uma resposta ao assombro que vivemos em 2018. Como explicar que o que está subindo ao poder, por mais truculento que possa parecer, foi escolhido por nós? Foi feita nossa vontade. É como se nos últimos meses, o Brasil tivesse aberto uma porta perigosa, que revela sentimentos e pensamentos muito contrários à Democracia. Se, no passado próximo, havia certo constrangimento em defender ideias assim, hoje, ao contrário, valores autoritários, ligados àquela herança que tentamos negar, estão autorizados a circular por aí. E o governo atual não só autoriza, como incentiva tal prática.
O Brasil abriu a jaula do autoritarismo em 2018?
Sempre fomos autoritários. Sempre flertamos com o autoritarismo e, nos momentos de crise, essa opção é a primeira a ser sacada. Vamos voltar a 2013, onde, talvez, estejam as primeiras pistas de que daríamos essa guinada à direita. Era um tempo de crises: econômica, social, política e cultural. O que se costuma fazer nesses momentos? Culpar alguém. No nosso contexto, culpamos o governo do PT pelos escândalos de corrupção e por todas as mazelas econômicas que viriam na esteira. Por extensão, os partidos de esquerda e as organizações que defendem direitos sociais também foram culpabilizados. Neste ponto, cresce a intolerância e os grupos se dividem entre os que defendem a eliminação da chamada banda podre, que seriam então os heróis justiceiros, e seus inimigos. Cresce a intolerância e, com ela, a noção de que o que não é igual ao pensamento do líder pode e deve ser extinto. E isso é muito sério. Ainda no nosso exemplo, esse monstro assombroso ressurge como uma resposta a um período de grandes avanços, grandes conquistas através de pedidos por mais direitos. Estou me referindo às manifestações de 2013 que nasceram do desejo de variados grupos por mais mobilidade, ou por mais acesso a direitos sociais.
Resolvemos abandonar de vez a ideia do ‘homem cordial’?
Me parece que a velha vestimenta da cordialidade, da democracia racial, dos bons selvagens, que adotávamos não têm cabido mais. Sempre fomos um povo autoritário, conservador e violento. Nossa feição foi talhada a partir da escravidão, que deixou o racismo como herança, do patrimonialismo, da violência, da corrupção e da desigualdade de gênero, por exemplo. As marcas dessas posturas redundam na polarização atual que experimentamos hoje, de forma que não dá mais para disfarçar.
É o racismo como traço fundador da nossa sociedade?
É uma marca profunda, certamente. O livro inicia deste ponto. Convivemos com a escravidão com muita normalidade e sua feição se colocou em nossas narrativas e em nosso cotidiano com uma normalidade brutal. Como, no fim da escravidão não houve um momento de revisar tudo isso, as consequências estão aqui, até hoje, estruturais.
As feridas da recente ditadura militar também não foram resolvidas…
A Constituição Federal de 1988 é um documento amplo, feito longamente e com muito cuidado. Justamente por isso, por seu caráter progressista e liberal, deixou algumas questões em aberto, para serem discutidas com calma e no tempo certo. Os militares, por exemplo, implicados com o regime, receberam, em vez de julgamento, uma anistia, que não os condenou nem passou a história a limpo. No entanto, a mesma Constituição permitiu a formação de Comissões da Verdade para trabalhar o legado da ditadura. No entanto, isso só não basta. Tudo aquilo que não é enfrentado, abertamente, ressurge, assombrando o presente. O atual governo vive e narra uma espécie de paraíso militar, que reforça a história desse país que sempre recorreu aos militares quando precisava avançar politicamente. Basta lembrar que a Primeira República começou e foi, por boa parte do tempo, um estado de sítio. Em relação à Ditadura de 1964, os relatos oficiais escondem não só os assassinatos, como também a inflação, o endividamento externo e a corrupção, ou a gente acha que isso não existia? A corrupção tem algo de endêmico no nosso Estado e, às vezes, voltamos a ela para buscar e encontrar salvadores da pátria, que nos livrarão dessa praga. Repetidas vezes, esse papel coube aos militares.
Como a corrupção se relaciona com essa questão do autoritarismo?
A narrativa da Lava Jato e, antes ainda, do combate ao mensalão, mensalinho, é toda pautada em como a corrupção deteriora a renda, os bens, o Estado, em como essa prática deteriora o que é público, de posse do povo de um lugar. No entanto, ao propor o fim da corrupção, os salvadores acabam sugerindo o fim do próprio Estado, como se a existência dessa instância tivesse uma natureza corrupta. Dessa vez, na Lava Jato, temos uma grande novidade. Pela primeira vez, temos corruptos e corruptores sendo investigados, julgados, condenados e presos. Por supostamente sugerir uma Justiça equânime, a força tarefa de Curitiba acabou alçando um juiz à condição de ídolo. Na verdade, a Justiça foi usada para fazer emergir uma ideologia, um projeto de poder. É importante entender que o autoritarismo está presente no modo de ação da força tarefa da Lava Jato, de seus procuradores e juízes. A troca de mensagens revelada recentemente mostra uma afronta à coisa pública, autoriza uma maneira de agir que não é republicana, numa espécie de ditadura do Judiciário, que se sobrepõe aos outros poderes, derrubando o equilíbrio tradicional entre as três esferas. O nome disso, como aparece no livro, é patrimonialismo, que ao lado do autoritarismo e da corrupção são os maiores inimigos do país. O patrimonialismo é uma mania que o brasileiro tem de achar que o Estado lhe pertence e que pode ser usado para fins pessoais e sociais. No caso da Lava Jato, o que vemos é o uso do Judiciário para causas particulares mesmo, um tipo de vingança, que dificulta a Democracia de seguir seu curso de aprofundamento.
A senhora tem defendido um diálogo mais efetivo entre a universidade e a população. O livro dá conta dessa proposta, ou seja, pode ajudar a construir caminhos para o enfrentamento dessa ascensão autoritária?
Ele é um livro bem amplo, que passa por essas questões que levantamos antes, mas tivemos o cuidado de não recortá-lo com notas, citações ou excesso de bibliografia, como é frequente em obras acadêmicas. Porque o intuito era conseguir uma obra séria, de consulta e reflexão, mas leve e gostosa o suficiente para alcançar públicos diversos, e não restrito às universidades, ou estudiosos dos temas. Devo o que sou e o que represento hoje à academia e não renego de forma alguma, mas entendo que é tempo de professores e pesquisadores fazerem contato com a sociedade. Há algumas décadas, tínhamos a figura do intelectual público, aquele que não é diretamente relacionado a uma instituição de ensino ou pesquisa, mas pode refletir sobre as questões da sociedade. Penso que é tempo de fazer chegar esses pensamentos e propostas para a sociedade como um todo. Seja via imprensa, ou redes sociais, tenho defendido que é nosso dever fazer o conteúdo chegar para amparar e fomentar a discussão. Só o diálogo trará caminhos mais frutíferos e menos ressecados, como o que vivemos.
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