Fepesp - Federação dos Professores do Estado de São Paulo

Por Beth Gaspar em 9 de junho de 2021

Laerte, setenta

Chegar aos 70 é perceber que 60 é o novo 40 (risos). Mas 70 ainda é bom. Acho que foi o [cartunista] Ziraldo que falou que a partir de 90 é que não vale mais a pena.

Moro em um sobrado. Estou dividindo de forma mais planejada as minhas subidas e descidas. Minha geriatra falou para medir a saturação [de oxigênio] ao usar a escada, controlar a frequência cardíaca. A ideia é ficar atenta e recuperar aos poucos a mobilidade, a força e a rotina.

A QUARENTENA

Eu fiz [a quarentena] mais rígida que eu pude. Mas tenho, por exemplo, pais que exigem cuidados. Eles estão com 97 anos [o pai, José Moacir] e 94 anos [a mãe, Maria de Lourdes]. A minha mãe tem dependência física total, ela não consegue mais andar. Eles moram sozinhos, com assistência permanente de cuidadoras. E eu suponho que tenha contraído o vírus num desses episódios de atender a minha mãe, levá-la em Pronto Socorro.

Avaliando, foi em algum momento desses. Porque, fora isso, minhas incursões pelo mundo são bastante modestas, muito cuidadosas. Não fico saindo. Não saio sem máscara. Uso serviços de entrega.

SABER QUE ESTÁ COM COVID

É amedrontador. Eu fiquei assustada. Entre os primeiros sintomas e a realização do teste, esperei cinco dias, como é recomendado. Depois foram mais dois dias para sair o resultado. Fiquei sabendo [que estava com Covid-19] numa quarta-feira. E eu já tinha uma semana com o vírus. Já estava fazendo inalação e tomando uns analgésicos. E bateu a ideia de que estava enfrentando uma coisa mais grave do que eu pensava.

Em casa, eu tive coriza, dor de cabeça, uma tosse perturbadora. No hospital, a tosse ficou prevalente o tempo todo e tinha a dificuldade de respirar.

Passou [pela cabeça o medo de um desfecho terrível]. É claro que passou. Eu achei que poderia piorar e ... A ideia que eu tinha de piorar era ser intubada [o que acabou não ocorrendo]. Porque envolve uma situação de inconsciência. Você fica sedada e sai do ar. O procedimento pode te levar para o óbito.

Ao mesmo tempo, muita gente... o próprio Bira foi intubado e saiu. Então eu estava dividida entre o modo pânico e o modo de serenidade. Porque eu sabia que estava sendo atendida por pessoas muito competentes.

Os medicamentos induzem ao sono. Então você fica mergulhando ali, assim [faz gesto de quem dorme e acorda].

O AFETO

Em alguns momentos, eu ficava com o celular. Limitei minhas comunicações à família. Mas eu sabia que as pessoas estavam se mobilizando e isso foi, nossa, muito comovente. Eu dava uma olhada no Twitter. Uau! Poxa, eu não mereço.

Fiquei muito mexida. Muito, muito. Você não faz ideia.

RELIGIÃO

Eu já fui católica, mas hoje não tenho mais questões com Deus. [O afeto] é, de alguma forma, um substituto da fé religiosa. É a ideia de que a humanidade vai, sim, conseguir se segurar e eu quero fazer parte disso também. Não vou comprar fuzil AK 47 achando que é a saída. Eu vou atrás de vacinas. De amparar as pessoas. De criar uma sociedade que pode se emancipar.

PENSAMENTOS

Eu pensava em um [episódio do] Greg News [programa apresentado pelo humorista Gregório Duvivier] que chamava-se “Cuidado”, que jogava com o duplo sentido: fique atenta porque algo é perigoso. E cuidado no sentido de atender, de amparar. Neste momento, a maior arma que a gente tem é cuidar das pessoas, dos velhos, das crianças, dos pobres, é o auxílio emergencial, é a vacina para todo mundo.

No Brasil a gente não sabe se isso vai acontecer porque temos um governo que é inimigo da população. O [presidente Jair] Bolsonaro está claramente trabalhando a favor do vírus. Um dia ele vai ter que ser removido e responsabilizado por esse crime.

CARTUNISTAS

Eu achei muito bonitinho, muito querido [o cartunista Aroeira, que retratou Laerte esmurrando um vírus com a cara de Bolsonaro e dizendo “agora é pessoal, seu estrupício”]. É emocionante as pessoas te tratarem como uma personagem.

A nossa categoria de chargistas de alguma forma incorporou aquele quase lema “ninguém solta a mão de ninguém”. O Aroeira foi também objeto de um movimento de solidariedade do qual eu fiz parte [quando o governo anunciou que o investigaria por causa de uma charge em que associava Bolsonaro ao nazismo]. De certa forma é uma coisa nova, de uma categoria que age como um corpo quando é ameaçada.

E eu fiquei comovida. Me senti querida pelos colegas e também vista como objeto de uma necessidade de defesa geral. Porque a Covid-19 não é só uma doença. Ela é uma doença que tem uma dimensão política muito clara, que está ligada a um problema político muito claro que é o avanço do fascismo no Brasil.

E essa mobilização é uma coisa da nossa época também.

O Gregório [Duvivier] outro dia defendeu a ideia de que não dá pra você fazer uma piada em cima de uma coisa que é já uma autoparódia [como o governo Bolsonaro].

Não sei se dá ou não dá. Mas é um desafio extra quando você tem pela frente pessoas que são caricatas. Um ministro das Relações Exteriores que não consegue falar. Que fica gaguejando, arfando. A emissão de voz dele é reveladora de alguém doente.

A [ministra da Mulher] Damares [Alves] é uma fanática. O Ricardo Salles [ministro do Meio Ambiente]. Toda a trupe bolsonarista é um desafio para humoristas, chargistas e caricaturistas. Para não falar do cabeça [Bolsonaro], com seus quatro filhos.

O [ditador Emílio Garrastazu] Médici não foi caricaturado. Ele foi desenhado depois do governo dele. Existia um terror no ar que não era expresso. As pessoas eram mortas.

Existem variações na tentativa de se estabelecer um projeto autoritário no Brasil que mudam de fase para fase. E que exigem novas ideias da oposição, de jornalistas, de caricaturistas.

Entre o medo pânico que nos impedia de desenhar sequer a caricatura do Médici até o momento atual, existem diferenças que obrigam a gente a repensar a nossa profissão e a nossa posição.

Faz parte do momento atual essa espécie de sentimento de categoria, de auto-apoio.

O FUTURO

Eu estou na posição de que não tem saída. Esteja eu otimista ou pessimista, não há alternativa a não ser se posicionar. É um trabalho incessante.

Há alguns anos a [jornalista] Eliane Brum defendeu o direito de você não ter esperança. A esperança é às vezes um fardo que não vai necessariamente mudar o que você pode e se dispõe a fazer. Trabalhar sem esperança de alguma forma te deixa mais disponível e ágil para fazer o que tem que fazer.

A gente esta num momento difícil, muito perigoso, cheio de riscos, de más probabilidades. Mas é também um momento de aumentar a consciência. De perceber que um gesto como o do padre Julio Lancellotti, que com uma marreta tirou aqueles paralelepípedos [que foram colocados sob um viaduto para impedir a presença de moradores de rua] tem valor e peso simbólico. A coisa ficou escandalosa a partir do gesto individual de alguém que tem compromisso com a população pobre, com os abandonados, os desprovidos de tudo.

DIREITOS

Se por um lado não aconteceu [depois da eleição de Bolsonaro] uma inundação de atitudes fascistas e violentas em relação à população LGBT, vem acontecendo um desmonte das estruturas de apoio que existiam antes. A Damares vem produzindo esse desmonte. É um modo de atuar diferente do crescimento fascista. É por baixo do pano.

As candidaturas [LGBT] se multiplicaram, as eleitas aumentaram. Mas, ao mesmo tempo, o deputado Arthur Lira é eleito presidente da Câmara dos Deputados. A coisa precisa ser avaliada como um todo.

[Do ponto de vista pessoal] Eu sou branca, de classe média, eu sou conhecida. Sofri alguns ataques de gente da imprensa e tal [quando se assumiu como transgênero]. Mas muito pouca coisa. Sempre contei com muito apoio. E acho que isso tem uma relação com as estruturas de classe e de desigualdade no Brasil. As trans que moram em condições desfavoráveis e que são negras, pobres, continuaram sendo agredidas, mortas, estupradas e violentadas.

EM CASA

Desde que começou a pandemia, não vi mais salão nem manicure. Eu gosto de ver a minha unha cuidada, o meu cabelo cuidado. Eu ia no [cabeleireiro] Andre Claret. Querido amigo. Como sou uma senhora pouco assídua, ele inventou uma cor para [tingir] o meu cabelo, para que quando começasse a aparecer a raiz [branca], ficasse menos evidente. Era um loiro acastanhado.

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