Fepesp - Federação dos Professores do Estado de São Paulo

Por Beth Gaspar em 10 de agosto de 2020

‘Quem vai se responsabilizar quando morrer o primeiro estudante e o primeiro professor?’

por Estêvão Bertoni,
jornal Nexo

 

O debate sobre a volta às escolas envolve preocupações e interesses variados em todo o mundo e questões ainda mais complexas num lugar marcado pela desigualdade como o Brasil. Países que já começaram a reabertura escolar têm observado efeitos diferentes na circulação do vírus. Ainda não há uma resposta fácil para a situação que em agosto de 2020 ainda afeta cerca de um bilhão de estudantes, em mais de 100 países, segundo as Nações Unidas.

47,8 milhões de estudantes estavam
matriculados na educação básica no Brasil
em 2019, segundo o Censo Escolar.
Desse total, 81% estudam na rede pública

O principal argumento levantando pelos defensores da volta das escolas é que a paralisação prolongada pode impactar de forma irreparável o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos. O secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, chamou a suspensão das aulas de uma “catástrofe geracional” capaz de minar “décadas de progresso” e exacerbar as desigualdades sociais.

Ele defendeu em 4 de agosto que o retorno às atividades escolares seja “prioridade máxima”, mas ressaltou que isso deve ocorrer onde a pandemia estiver controlada, o que não é o caso do Brasil. No dia seguinte, a OMS (Organização Mundial de Saúde) afirmou que reabrir as escolas num contexto de ampla transmissão pode piorar o problema.

Alguns estados brasileiros já começaram a permitir a retomada de aulas na rede privada, enquanto as escolas públicas seguem majoritariamente fechadas desde março. No estado de São Paulo, que concentra os casos e mortes por covid-19 no país, o governador João Doria anunciou que atividades presenciais de reforço e acolhimento poderão ser retomadas em 8 de setembro, mas a volta às aulas foi adiada para 7 de outubro. Independentemente da decisão, algumas cidades, com as do ABC, já descartaram reabrir as escolas municipais em 2020.

Para entender o que pensa a comunidade escolar sobre uma possível reabertura em meio à pandemia, o Nexo ouviu seis pessoas: uma estudante, uma mãe de aluna que também leciona em escola pública, uma entidade que representa professores, uma profissional de escola privada e um especialista em educação que atuam em São Paulo, estado mais atingido pela doença, além de um epidemiologista da Fiocruz.

 

‘Não tem nem papel higiênico na escola, imagine álcool em gel’
Adrielle Nathalia dos Santos Ribeiro
aluna do terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual Professor Sebastião de Oliveira Gusmão, em São Paulo

Minha mãe e minha irmã trabalham, e tenho que ficar com o meu irmão. É casa para limpar, comida para fazer, e à noite, quando estou esgotada, não consigo estudar. Recebi duas apostilas na escola. No Facebook, criaram um grupo com os alunos. Também me passaram um site com as matérias e as explicações, e tenho os professores nas redes sociais. Consegui fazer alguns trabalhos, mas é muito complicado. Tem matérias que não entendo sem o auxílio dos professores. Faço o possível para manter contato com eles, algumas dúvidas ainda consigo tirar. Mas a internet aqui não é tão boa. De vez em quando consigo ver as vídeo-aulas, só que elas só acontecem ao vivo no horário em que estou mais ocupada.

Além de estudar, faz um ano que trabalho como estagiária da Caixa Econômica Federal. No início da pandemia, dois patrões meus estavam com suspeita de covid e me mandaram ficar em casa. Estou em casa, mas acabei contraindo o vírus no final de julho. O médico falou pra ficar com máscara dentro de casa e em isolamento. Não consigo ficar num quarto separado porque durmo com meus dois irmãos e a casa é pequena. Eu tentei ficar ao máximo longe deles, usando máscara. Na minha família só eu peguei.

Por mais que eu queira muito que as aulas voltem, acho que não é a prioridade agora, porque tem muita gente morrendo. A escola em si não tem estrutura para garantir a higiene dos alunos. No nosso dia a dia, uma coisa tão simples quanto papel higiênico não tem no banheiro. Imagine álcool em gel e máscara. É muita gente que estuda lá, principalmente à noite. Se voltar as aulas, não vou. Ainda pretendo prestar vestibular para administração de empresas. Vou fazer Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e estava pensando em tentar a Universidade Zumbi dos Palmares. Continuo com essa intenção, é uma coisa que eu não posso desistir. Tenho fé que assim que acabar a pandemia vou correr atrás do tempo perdido.

 

‘Volta traria estresse imenso de tentar controlar o incontrolável’
Rebeca Castiglione
professora na Escola Municipal de Educação Infantil Armando de Arruda Pereira, em São Paulo, e mãe de uma aluna de dois anos da rede pública

Como professora de alunos de 4 e 5 anos, tenho feito atendimentos das crianças a distância com a plataforma que a prefeitura disponibilizou. Na nossa escola o que funciona mais no contato com as famílias é o WhatsApp e o Facebook, então a gente segue atendendo assim. Bom não é [o trabalho remoto]. A educação infantil é pautada em dois eixos, que são brincadeiras e interações. Os dois ficam muito comprometidos quando a gente não pode estar junto. Mas, por um lado, é um jeito de manter contato com as crianças. As famílias falaram em reunião o quanto tem sido importante a escola se manter presente. Mas é completamente distante do que a gente acredita e defende. Educação a distância na educação infantil não existe.

Voltar às aulas agora deixaria todo mundo num nível de estresse imenso de tentar controlar uma coisa que é incontrolável. Nossa escola é muito privilegiada, pois tem uma área externa imensa. Nesse sentido, seria mais fácil estar ao ar livre mais tempo. Por outro lado, são crianças menores, são muito corporais, a mão está sempre em todo o canto. Como conseguir manter as máscaras nas crianças e se comunicar desse jeito com elas, sem que elas fiquem incomodadas? Como fazer na hora da refeição? Na nossa escola, que tem mais de 300 alunos, a maioria das famílias têm muita clareza de que o momento não é seguro para voltar e não quer voltar.

O momento que o mundo está passando também ensina muitas coisas, e as crianças seguem se desenvolvendo. Não é que elas estejam perdendo tudo. Mas a gente sabe que estar na escola é um espaço privilegiado de aprender, de estar junto. Tem perdas, sem dúvida, mas qual é a nossa opção? A gente está falando de redução de danos. Neste momento, se a outra opção é colocar em risco a vida das crianças ou das pessoas que cuidam delas, é o que a gente tem que fazer: ficar em quarentena para que esse tempo passe o mais breve possível. O que aconteceu foi que a gente não viu essas medidas sendo tomadas e com isso o tempo está passando, e a gente não tem perspectiva de retorno.

 

‘Não bastam só protocolos sanitários, tem que ter protocolo psicológico’
Celso Napolitano
presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo, entidade que representa profissionais da rede privada de ensino

Eu penso que o João Doria [governador de São Paulo] sucumbiu a uma pressão das escolas particulares, principalmente das escolas de educação infantil que estão com grande receio em relação ao seu negócio, o que talvez até seja justificável. Mas em vez de o governo ter feito, desde o começo da pandemia, um planejamento socioeconômico e financeiro para esses ramos de atividades que se sabia que teriam problemas, agora fica tapando buraco.

Em que condições vamos voltar no dia 7 de outubro com 30% dos alunos só? E o que fazer com os outros 70%? Um argumento para justificar a volta às aulas é que os pais precisam trabalhar. Mas se as crianças vão voltar uma ou duas vezes por semana, como é que o pai vai fazer nos outros dias? Há que se discutir também de que forma esses alunos voltarão. Não bastam só protocolos sanitários, tem que ter outros tipos de protocolo psicológico e até fonoaudiológico. Como é que um professor vai trabalhar quatro horas de máscara? Como fica a questão do transporte público? Como essa pessoa vai se transportar até a escola?

O que tinha que se pensar, principalmente as escolas, é numa maneira de trabalhar 2020 e 2021 de modo que os conteúdos sejam modificados, em 2020 remotamente, e talvez 2021 presencialmente. Não acho que a perda seja irrecuperável. É uma questão de planejamento. Onde vai ter problema? No último ano do ensino médio. Porque aí a pessoa vai sair da escola, o jovem vai querer ir para a universidade, e deveria haver uma maneira de compensar esse ano que efetivamente foi perdido, talvez uma complementação no ensino superior. Todas as outras etapas são recuperáveis, basta ter um planejamento multidisciplinar nas escolas, com a participação dos educadores e uma gestão democrática para que essas lacunas sejam preenchidas ao longo da vida escolar da pessoa.

 

‘A gente sabe que alguns pais vão solicitar que os filhos não voltem’
Mayra Ivanoff Lora
diretora pedagógica do Colégio Bandeirantes, da rede privada, em São Paulo

Desde meados de junho a gente estava pronto para voltar com as aulas em agosto, que era a primeira perspectiva de retomada. A gente voltaria dividindo as turmas e manteria um ensino híbrido [presencial e remoto], com as questões de distanciamento que são necessárias. Firmamos uma parceria com o hospital Sírio Libanês, para eles assumirem nosso ambulatório. Estão nos dando orientações. Muito provavelmente, a gente voltando, não vai ter intervalo. Vai ter um turno mais curto, para o aluno não ter que parar para fazer uma alimentação, ou se fizer, vai ser na própria sala. A maior mudança é recolocar as carteiras, para ter o menor número de alunos por sala, e trabalhar na questão da entrada com o controle de temperatura.

As aberturas [nas cidades] que aconteceram antes das escolas vão transmitindo também segurança para as pessoas. Elas estão saindo mais, tomando cuidado. Tudo isso influencia muito nessas decisões familiares. Não é a gente que tem que arbitrar sobre a volta, mas de tudo o que se sabe dessa doença tão desconhecida, estamos tomando todos os cuidados. Mas a gente sabe que que alguns pais vão solicitar que os filhos não voltem. Têm pais com medo e alunos com uma situação de risco maior. A gente tem alunos que vão permanecer 100% online.

Em termos acadêmicos, o ano é recuperável. Existe um planejamento. O maior cuidado neste momento, e que aí sim é uma perda que vai ter que ser muito trabalhada com todos, é essa questão emocional que a crise está deixando. Não é um trabalho de um dia de acolhimento, é um trabalho que vai ter que ter muita atenção nos próximos tempos.

 

‘Quem vai se responsabilizar quando morrer o primeiro estudante e o primeiro professor?’
Fernando Cássio
doutor em ciências e professor da Universidade Federal do ABC

A pressão econômica pelo retorno se divide em duas partes: tem uma pressão de grupos econômicos que precisam das matrículas [até o início de agosto, cerca de 35 mil estudantes migraram de escolas privadas para públicas, segundo um levantamento do jornal O Globo]. Os mantenedores vão colocar prefeitos e governadores numa situação difícil a ponto de ter situações aberrantes de o Estado deixar que escolas privadas abram e as públicas não. Tem aí vários níveis de violação da educação como direito e bem público. O Estado permite que alguns fiquem sem estudar e que outros estudem. O outro lado da pressão econômica recai sobre as famílias pobres, porque elas precisam trabalhar.

A questão é que, uma vez que a gente abra as escolas, massivamente, qual é o impacto disso na evolução da pandemia no território? A gente está falando de quase 50 milhões de estudantes na educação básica, 2,2 milhões de profissionais do magistério, sem contar os profissionais da educação que não atuam na sala de aula. Abrir escolas significa, ainda que se abra escalonado, tirar 30% da população de casa todos os dias, colocar no transporte público, no comércio, aglomerar. E os protocolos não vão dar conta de conter isso.

É desejável pensar em protocolos considerando as realidades locais. A questão é que as comunidades escolares estão atoladas em burocracia. Como uma comunidade escolar vai ter condições de construir um protocolo adequado se não tem condições materiais, se não tem autonomia financeira mínima para decidir se precisam de um tapete sanitizador ou de um termômetro? E o Estado não está fazendo nenhuma sinalização de que vai colocar recursos nisso.

É um dilema ético. Tem a ver com classe, com vidas que valem mais e valem menos. E isso é inadmissível. Quem vai se responsabilizar quando morrer o primeiro estudante e o primeiro professor? Quem vai se responsabilizar quando for detectado que existe causalidade positiva entre mortes, adoecimentos e aberturas de escolas? A resposta é clara: é o Estado que deveria ser responsabilizado porque é ele que tem a prerrogativa de tomar essa decisão.

 

‘As diretrizes não podem se pautar só no ambiente escolar’
Diego Xavier
epidemiologista do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz)

A gente publicou uma nota na Fiocruz que contabilizou 9,3 milhões de pessoas no Brasil que são idosos ou adultos com algum fator de risco para a covid-19 e que residem com uma criança em idade escolar. Essa população, em tese, tem se mantido em isolamento porque é exatamente a população de risco. Na volta às aulas essa população vai ter que conviver com o vírus dentro da sua residência. Se a gente for considerar que 10% desses casos podem evoluir para um caso grave, a gente está falando em 90 mil pessoas. E se a gente fosse considerar a taxa de mortalidade observada no Brasil, de 3,7%, a gente teria um acréscimo de cerca de 35 mil óbitos só nessa população.

Só que a gente pondera também que a comunidade escolar vai muito além da escola e dessa população. Uma família que está em isolamento porque o filho não está indo para a escola, a partir do momento em que a criança vai para a escola, essa família começa a circular também. As diretrizes que estão sendo propostas para a volta às aulas são muito pautadas no ambiente escolar. Não está considerando todo esse conjunto de pessoas.

A tendência é que se a gente aumenta a circulação das pessoas na rua, o vírus volta a circular com força, e o número de casos graves vai aumentar. No momento, a gente está desmobilizando os recursos extras, porque estão desmontando hospitais de campanha, estão sendo retomadas as cirurgias eletivas. Quando a gente fala que estamos com uma folga em UTI [Unidade de Terapia Intensiva], essa UTI está sendo ocupada por outros problemas. Se a gente tiver um aumento da circulação de pessoas, um aumento no número de casos graves num momento em que a gente não dispõe mais de recursos extras para o atendimento da covid-19, inevitavelmente a gente volta a ter um cenário de possível colapso do sistema de saúde.

Se retomar as aulas sem um planejamento, principalmente, de testagem e acompanhamento de casos positivos e contatos, com testes do tipo PCR, que identifica quem está transmitindo, inevitavelmente vai ter um aumento do número de casos. O plano estratégico para voltar às aulas não está pautado em questões técnicos científicas. Ele está pautado em opinião.

 

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/08/09/Do-aluno-ao-epidemiologista-o-que-pensam-sobre-a-volta-%C3%A0s-aulas?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo
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