A decisão liminar proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.363, no dia 6 de abril de 2020, cujos fundamentos foram explicitados em nova decisão datada de 13 de abril de 2020, desagradou gregos e troianos.
Desagradou empregadores, pois, interpretando o art. 11, § 4º, da MP 936/2020 conforme à Constituição federal, estabeleceu que os acordos individuais celebrados estão sujeitos à mudança via negociação coletiva.
Desagradou trabalhadores porque matizou, em face das especiais circunstâncias causadas pela crise sanitária causada pelo Covid-19, a aplicação da norma constitucional que condiciona a validade da redução salarial à celebração de acordo ou convenção coletiva de trabalho (artigo 7º, inciso VI, da CR).
Desagrados à parte, a questão envolve fatos que deveriam ser imunes à ideologia e à política. São eles:
► A estratégia mais eficiente de combate ao coronavírus e, portanto, de contenção do contágio é o isolamento social, o que impacta diretamente a economia real do mundo. Afinal, ao ficar em casa, as pessoas deixam de produzir e de consumir, paralisando quase que totalmente a economia.
► Para fazer frente à crise, os governos precisam assegurar a sobrevivência de famílias e empresas, garantindo que seja possível voltar a crescer economicamente uma vez superada a pandemia.
► O mercado é uma abstração que só existe e funciona se houver gente trabalhando, produzindo e consumindo. Sem pessoas que trabalham, o capital colapsa.
Nesse contexto, as medidas emergenciais adotadas pelo governo – presentes e futuras – deveriam contemplar e abranger todo o universo das relações trabalhistas, vale dizer, empregadores, trabalhadores e as entidades que representam ambos os lados. O diálogo social é a forma ideal para estabelecer mecanismos eficientes e sustentáveis de superação dos desafios trazidos pelo Covid-19, porque, como esclarece a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a construção coletiva dá legitimidade às medidas adotadas. Exemplo concreto disso é a Alemanha pós crise financeira de 2008 que, mediante negociação coletiva e participação dos trabalhadores nas empresas, logrou a menor taxa de desemprego da Europa.
Nada substitui a participação democrática dos sindicatos nas negociações. Afinal, acordos individuais feitos sob a ameaça real de desemprego não são fruto da concertação de vontades livres. Não são éticos. Pouco importa que a norma não preveja penalidade à pessoa que se recuse a fechar acordo com o patrão. A realidade é eloquente o suficiente para dispensar sanções legais. Quem vive a atual crise sabe muito bem que a consequência da sua recusa em reduzir jornada e salário ou suspender o contrato de trabalho será a demissão. Isso tanto é verdade que a MP nº 936/2020 não proíbe as demissões tal como foi feito na Itália e na Argentina.
Os sindicatos, assim como as pessoas que trabalham e são constantemente invisibilizadas por nomes sofisticados como “colaboradores” e “empreendedores de si mesmos”, não são o inimigo. São parte de um sistema. Parte imprescindível, aliás, como nos demonstra diuturnamente o coronavírus. A superação da crise sanitária e a volta ao crescimento econômico depende do envolvimento dessas pessoas e entidades. Afastá-las do processo de enfrentamento e superação da crise sanitária certamente agravará a estagnação produtiva e econômica que o país, o mundo todo em verdade, vivenciam.
E este agravamento consiste, inclusive, na insegurança jurídica gerada pela própria MP nº 936/2020 ao instituir modalidade inconstitucional de redução de jornada e salário. Afinal, o texto constitucional dispõe expressamente que “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;”. Ora, estabelecer uma alternativa inconstitucional e antidemocrática para enfrentar o coronavírus não exime as empresas de futuros litígios. Pelo contrário, promove disputas judiciais posteriores para o restabelecimento de direitos constitucionalmente garantidos.
É este texto constitucional que deverá balizar, espera-se, o Supremo Tribunal Federal, no dia 16/04/2020, quando julgará as ações diretas de inconstitucionalidade sobre as MP nºs 927 e 936.
A urgência, a gravidade e a imprevisibilidade que vivemos ao nos deparar com o novo coronavírus, exige de nós respostas igualmente contundentes. Não é momento de seguir a cartilha ultraliberal. Os baluartes do sistema capitalista, da austeridade e da flexibilidade reconhecem isso: FMI, Banco Mundial, Reino Unido, para citar apenas alguns exemplos.
O que o Brasil precisa é de ação coordenada e solidária entre os atores do mundo do trabalho. É de ética. É de legitimidade. De pirataria moderna, já basta o governo norte-americano que reteve equipamentos de saúde vindos da China para o Brasil e outros países. Cabe a todos, portanto, empregadores, trabalhadores, cidadãos, governantes, juízes escolher entre o diálogo e a pirataria. Que tenhamos piedade de nós mesmos.
*Fernanda Caldas Giorgi é advogada em Direito do Trabalho, Direito Sindical, Direito Coletivo do Trabalho na LBS advogados