Quem já conseguiu atravessar as 1.200 páginas da edição condensada da monumental obra de Winston Churchill denominada "Memórias da Segunda Guerra Mundial" pôde notar a decepção do autor com o fracasso das democracias europeias por ter permitido aquela absurda matança do século XX. Cerca de 60 milhões de pessoas morreram durante a guerra, sendo 8% da população da Alemanha e 14% dos habitantes da então União Soviética.
Churchill, que foi primeiro-ministro do Reino Unido durante a guerra, confessa que teria sido extremamente fácil evitar aquela tragédia. Observa que a maldade dos perversos foi reforçada pela fraqueza dos virtuosos; que as recomendações de prudência e continência se transformaram nos principais agentes de um perigo mortal; que o meio-termo adotado em função de desejos de segurança e de uma vida tranquila conduziu ao desastre.
Quando Churchill expõe essas ideias, está falando claramente de omissão. Está dizendo que se pode pagar muito caro por omissões e que elas muitas vezes são mortais.
Se não há reação a absurdos, as omissões podem ser mortais
Depois da Primeira Guerra Mundial, escreve Churchill, teria sido simples manter a Alemanha desarmada e os vencedores aliados armados, para impor um longo período de paz na Europa. Mas não se fez isso.
Em 1936, Adolf Hitler invadiu a Renânia, região da fronteira da Alemanha com a França que havia sido desmilitarizada pelo Tratado de Versalhes no fim da Primeira Guerra. A região era uma barreira natural para uma eventual invasão da França pelos alemães. Violando o Tratado de Versalhes, Hitler enviou suas tropas para a Renânia e os países aliados, para evitar conflitos, toleraram. Acreditaram no blefe de Hitler de que o exército alemão tinha ordens para não resistir e retirar-se da região se houvesse algum confronto.
Em resumo, a eclosão da Segunda Guerra, depreende-se do relato de Churchill, se deu por causa de omissões. Quando Hitler colocou seus exércitos na Renânia, que deveria ficar desmilitarizada, França e Reino Unido disseram "deixa pra lá, ele vai parar por aí". Mas depois ele invadiu a Áustria, a Checoslováquia e não parou. Quando França e Reino Unido se deram conta, era tarde demais.
Teria sido extremamente fácil, portanto, ter impedido a ascensão de Hitler, segundo Churchill, se os vencedores da Primeira Guerra não tivessem pecado pela omissão. Viram, mas se omitiram quando Hitler tornou o serviço militar obrigatório e foi ampliando seu exército, quando montou as fábricas de munições e quando transformou toda a sua indústria num arsenal bélico.
Limites - Quando se faz uma política econômica exclusivamente voltada ao aperto fiscal, deixando para considerar mais tarde o impacto que essa política terá sobre a vida das pessoas que estão sem emprego, passam dificuldades e veem avançar a desagregação de suas famílias, as cabeças pensantes deveriam reagir. Se não reagem, estamos falando de omissão.
Quando se vende a ideia de que uma reforma, como a da Previdência, vai sanar todos os males da economia e impulsionar o crescimento simplesmente porque vai restaurar a confiança, os sensatos deveriam reagir, sob pena de omissão.
Quando se olha com desprezo para a indústria nacional, se procura abertamente desidratar o principal banco de desenvolvimento que a financia, os empresários brasileiros, nacionalistas ou não, deveriam se insurgir. Se não o fazem, estamos falando de omissão.
Quando se pratica durante anos uma política de juros que desestimula o investimento, incentiva o ganho financeiro e deprime a economia, empresários do setor produtivo deveriam protestar. Se ficam calados e até se rendem às justificativas do setor financeiro para spreads absurdos, sem similar no mundo capitalista, trata-se de omissão.
Quando se ataca a preservação ambiental e se arruína a reputação do país no exterior, as cabeças pensantes, sejam de esquerda, sejam de direita, deveriam reagir. Se apenas algumas reagem, temos mais um caso de omissão. O país passa vergonha nos fóruns internacionais e fica ameaçado de sofrer represálias econômicas.
Quando se baixa uma medida confessadamente pensada como vingança para prejudicar um setor da mídia tradicional, as cabeças pensantes e as entidades empresariais deveriam reagir. Aquelas que não reagem pecam por omissão sem imaginar que, se hoje são beneficiadas, amanhã poderão ser vítimas.
Quando juízes e procuradores são pegos em conluio para condenar réus, ainda que isso tenha um objetivo nobre, o combate à corrupção, a reação deveria ser imediata. Os que se calam praticam omissão, sem perceber que um dia podem ser vítimas dessa mesma teoria de que os fins justificam os meios.
Quando uma vereadora é brutalmente assassinada, com claros indícios de crime político, e 17 meses depois não se tem notícia dos criminosos e mandantes, o meio jurídico-político deveria reagir com firmeza. Se esquece o assunto, trata-se de omissão.
Quando um governante estimula abertamente o uso de armas de fogo e fuzilamentos sumários em um país onde nem a pena de morte existe, deveria haver resistência social. Se não há, eis mais um caso de omissão.
Quando se pratica o nepotismo descaradamente, quando se exaltam ditadores e se chama torturador de herói nacional, quando se contestam estatísticas de instituições com idoneidade indiscutível, quando se levantam dúvidas sobre questões cientificamente comprovadas, quando se ignora o avanço da desigualdade, quando se impõe censura a livros, quando se tenta introduzir ideologia na educação com o discurso de combate à ideologia, quando se quer militarizar o ensino... Quando tudo isso acontece, os que se calam se omitem.
A tolerância é, sem dúvida, uma virtude, mas precisa ter limites, porque pode levar a situações fatais, como nos não tão longínquos anos 1930.
Pedro Cafardo é editor-executivo do jornal Valor Econômico
.