Tarde da noite. João está cansado e com fome. Resolve não sair de casa e pede uma pizza. Quarenta minutos depois, José está lá, com a encomenda. “Veio até rápido, que bom”, pensa João, que só tem olhos para a pizza. Quer saber se ela não se desmantelou. Afinal, José veio de bicicleta: “Que sujeito doido!”.
Entrega feita. Pagamento efetuado. O contato termina. Mas os olhares não se cruzam. E por que precisariam? João não considera a existência de José. Afinal, pediu pelo aplicativo. Já José entende que João é apenas mais um ponto de entrega, uma vez que o seu serviço será remunerado via aplicativo.
O encontro é real, mas a relação é virtual. Trocassem palavras, seriam percebidas as condições daquele tipo de trabalho que são, em geral, bastante desfavoráveis, em termos de horas de trabalho e de ganhos, porque, na lógica virtual instaurada, José não é empregado de ninguém e, assim, as obrigações trabalhistas não são respeitadas.
A situação, entretanto, é bem mais concreta do que se apresenta porque o aplicativo é resultado da atividade de uma empresa. É uma empresa que, possuidora dos meios necessários, oferece o trabalho de José para João. Quando esse trabalho é realizado com habitualidade (de forma não episódica, independentemente de uma quantificação semanal específica), há a formação de um vínculo de emprego, para que direitos trabalhistas sejam exigíveis e as repercussões sociais se efetivem (artigos 2º e 3º da CLT).
A proliferação do uso da tecnológica digital para essa finalidade lucrativa não representa qualquer novidade para o direito do trabalho. O modo de exploração do trabalho aparece como algo diferente e novo. Essencialmente, é mais do mesmo.
Não há diferença alguma entre produzir copos, pagando salários aos trabalhadores que atuam na unidade fabril, e vender facilidades, pagando o serviço por meio da retenção de percentual do valor cobrado do cliente da possuidora do aplicativo.
Acatar as imposições do suposto “mundo virtual” confere às empresas do setor a possibilidade de explorarem o trabalho de forma generalizada e promíscua, sem qualquer contribuição para o projeto de seguridade social, constitucionalmente prometido. Tomam para si, exclusivamente, os efeitos econômicos do trabalho de milhões de pessoas, que estão por aí, a céu aberto, reproduzindo formas quase medievais de exploração do trabalho, alimentadas por um processo de destruição da consciência em torno da própria existência que as faz acreditar que são empreendedoras —ou empresárias de si mesmas.
Como a compreensão humana não pode ser delimitada pelos algoritmos, enxergar esses seres humanos é tarefa primária de uma necessária reação à barbárie.
Quando João, que não raro é também um trabalhador precário, não se vê em José e este não reconhece João, é sinal de que a tecnologia está sendo instrumentalizada para consumir não só braços, mas também mentes. E não é difícil reconhecer isso: pois, se o mundo proposto é virtual, seus efeitos danosos são bastante concretos. As chances para essa apreensão se renovarão sempre que a servidão bater à sua porta!
(publicado originalmente em Folha de S. Paulo, 26/06/19)