Federação dos Professores do Estado de São Paulo, 28 de maro de 2024

25 de maio de 2021

As armadilhas da educação via plataformas

O valor dado à “inovação” da tecnologia no ensino não é neutro. Há interesses comerciais, culto à renovação eterna, capitalização de dados pessoais – e nenhum debate sobre isso. No bolsonarismo, piora: digitalização favorece manipulação política

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por Katya Braghini

 

O ambiente está propício para processos de privatização do ensino público pelos mais variados caminhos: rendimentos, aplicação em bolsa, privatização do patrimônio público, venda de materiais, necessidades com tecnologias de ensino etc. Com o agravamento da pandemia, as necessidades de comunicação entre a escola, os alunos e a família nos levaram a um caminho, que sem muita reflexão, pareceu mais do que inevitável: a abertura irrestrita às tecnologias de informação e comunicação (TICs), como caminho mais viável para este fim.

 

Braghini: ‘A questão principal é que há uma espécie de espírito acrítico que vê a solução dos problemas da educação nesses produtos tecnológicos’

Vistas como “inovações educacionais”, as TICs foram ganhando terreno na educação brasileira, muitas vezes apresentadas como a encarnação definitiva da modernidade educativa revestida de futurismo.

O fato é que o caráter de “inovação” surge em nossas vidas como uma neutralidade inquestionável que, por isso mesmo, é absolutamente problemático e passível de questionamentos de diferentes níveis: 1) É processo histórico, e portanto, passa por escrutínios de ordem política, social, temporal: quais são os sujeitos, grupos e instituições que balizam a ideia a dita novidade? Quais são os simbolismos que balizam esse fetiche por tudo que é “novo”? De onde eles surgem? Para quais interesses e fins? Por que o atual foco das tais inovações recai de maneira irrestrita nas tecnologias de informação? Não temos mais nenhuma outra opção de inovação educacional que não seja esta? Quais outros discursos estão sendo apagados?

Sobre a tentativa de apagamento de inovações educacionais que não sejam somente as tecnológicas, mas outras, abertas, coletivas, comuns, falaremos em outra oportunidade.

Se as “inovações” acontecem no processo histórico elas podem ser pensadas como a gerência de interesses e práticas de grupos determinados, que podem ou não gerar um objeto material, uma coisa. Muitas vezes essas inovações surgem na forma e reformas educacionais, com fins de reformas sociais. Muitas vezes são instrumentos intelectuais que nos fazem enxergar situações ainda não percebidas. Há inúmeras inovações pedagógicas, tidas por inovações frugais, que surgem dentro das escolas, feitas por professores e alunos, e eles nem sequer sabem que estão inovando. Porque algo, para ser “novo” tem que ser percebido, compreendido, reconhecido como tal. Todo invento é um projeto político e possui estratégia de produção, difusão, circulação e reconhecimento. Algo que é novo, precisa ser reconhecido desta forma. O que significa dizer que somente é apresentado como “inovador”, algo que é “inevitável”, pelo esforço discursivo de grupos muito interessados no sucesso de sua novidade.

A história das inovações é a história das relações sociais em disputa pela criatividade. Alguns têm o poder de capitalizá-la, julgando fazer “o bem”: ter as melhores soluções, os mais sofisticados cases de sucesso, em nome da “melhoria da educação brasileira”. Outros, parecem se revestir da áurea de retrógrados, quando criticam esse tipo de posição que joga sistematicamente ao passado práticas, ações, gestos, criações, sentimentos, que também já foram inovadores e que, agora, não servem mais para nada. Chega a ser ingenuidade coletiva desconsiderar a história como um celeiro de ideias e soluções. E chega a ser escravizador que somos levados à perseguição daquilo que é sempre “novo”, mas que sofre de obsolescência programada, e portanto, efêmero.

A questão principal é que há uma espécie de espírito acrítico que vê a solução dos problemas da educação nesses produtos tecnológicos: cadeias de streaming, plataformas com diferentes atividades, sites educacionais, aplicativos com variados conteúdos, ferramentas com dinâmicas de aula, aulas remotas, gravadas, circulação transnacional de conteúdo etc.

Não se trata aqui de criar fobia frente às tecnologias. Escrever em um papel com uma caneta é uma tecnologia. Não é disso que falo. Trata-se de problematizar diferentes aspectos desse movimento social, político, educacional que vê apenas positividade nas ditas ferramentas tecnológicas e absorve um discurso como se estivesse bebendo água. Não reconhece os grandes interesses de capital envoltos nessas transações; não percebe as transações mais ilícitas que lícitas dos governos, mediadores, entre os interesses privados e os públicos; não compreende que tecnologias de difusão de conhecimentos podem repassar qualquer tipo de conhecimento, não apenas aqueles reconhecidos socialmente; não há discussão sobre os requisitos internacionais de proteção à saúde dos estudantes que passam horas em frente a essas máquinas, por estudo e lazer; não se tem claro as regulamentações sobre a transferência de dados de crianças e adolescentes que transitam por essas plataformas e são moedas de troca etc…

A lista de problematizações é mais longa.

Perceber o posicionamento dos governos frente a tais necessidades urgentes com a tecnologia está dentro de um amplo processo de privatização do ensino público, já entendido pela Organização Mundial do Comércio (OMC) como campo aberto para ações de capitalização.

Há sim processos inovadores que visam a segmentação do entendimento de “público” em pequenas instâncias de mercantilização: o aluno necessita de aparelhos para ter a aula do futuro, os professor é tutor, secretariado, para enfatizar a necessidade da compra de tais objetos, a escola vira posto de cartelização de diferentes marcas e produtos, o estado agencia os trâmites e se desvincula dos processos de bem-estar social sob sua responsabilidade, ampliados ainda mais pelos vínculos de escolas com vouchers e escolas charters, sectárias e segregacionistas desde o seu nascedouro nos EUA, retumbante fracasso no Chile.

Ainda que haja essa inevitabilidade com os processos tecnocientífico que são incorporados pela educação escolar, pois já faz tempo que a escola é o ambiente perfeito para a amplificação do mercado de inovações, na forma de produtos. Mas, como ficamos se esse conjunto de coisas também é usado para agremiar frentes fascistas, para a criação de um mundo paralelo, repleto de mentiras, ambiente amplificador de atividades suspeitas de aliciamento? E ainda assim ela aparecesse como uma “inovação educacional”?

A IPTV anuncia em seu site ser um grupo que desde 2000 presta soluções de tecnologia principalmente voltados à educação, sendo líder no mercado com TV interativa, videoconferência multiponto por IP. Em junho do ano passado, The Intercept fez um artigo chamado “Escola com partido” falando sobre essa empresa e a sua relação com Jair Bolsonaro.1 Primeiro o artigo anuncia que há 7,1 milhões de alunos e professores de São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará usando-a para aulas remotas. Depois, diz a sede da empresa fica numa sobreloja sem identificação, sem placa, local modesto, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Um tipo de suspeição de endereço muito característica na vida política do clã Bolsonaro. Diz que a tal empresa é ligada a políticos da base bolsonarista e que um deles é acusado de participar de uma rede de prostituição de menores de idade. A empresa se diz financiada por várias empresas privadas que usam os seus serviços, porque fornece aplicativos (APPs) “de graça” para os governos. Mas ela se recusa a apontar quais são as tais empresas, sem indicar a proveniência do capital.

Ainda assim, os governos desses estados mantêm relações com a plataforma para atender as suas respectivas redes de ensino. Os alunos precisam fazer cadastro, e ao acessar o aplicativo, autorizam a captação de seus dados pessoais. Os professores e estudantes ao concordarem com as políticas de privacidade transferem dados das secretarias de educação, um histórico do aluno, nome, série, curso etc. Eles têm acesso ao microfone do celular, às mensagens de grupos de bate-papo etc. Com toda essa cessão de dados, fica mais claro compreender os motivos dos aplicativos serem cedidos “de graça” às secretarias de educação dos estados, tão ávidas em ter aulas remotas durante o período da pandemia e tão distraídas em relação à venda de informação de estudantes e do funcionalismo sob sua responsabilidade.

O fato é que antes desse período de pandemia e da urgência pelas aulas remotas, o único produto razoavelmente bem sucedido do grupo IPTV era o aplicativo de streaming de vídeo Mano. Este aplicativo hospeda a TV Jair Bolsonaro, usada durante a sua campanha. Sabemos que Bolsonaro, capitaneado pelos filhos, faz uso massivo das redes de relacionamento para os seus comunicados ao público. Ter um canal de TV por IP é uma forma de estar em contato com os seus seguidores, sem necessariamente ter o cerco das políticas de atendimentos das grandes plataformas como o Facebook e o Twitter.

Além disso, o contato ativo com os seus seguidores, por uma rede particular, deixa o caminho livre à difusão de todo o complexo de mentiras, teorias da conspiração, intrigas, acusações infundadas, idiotices e incompetências por um canal de agremiação de simpatizantes. Está ali estabelecido um território repleto de extremismo social, político, armado. É um canal de fidelização, onde usuários interagem por meio de comentários, com textos, enviam fotos, mandam emojis.

A empresa se mantém no limbo, pois diz que não tem relações diretas com a família Bolsonaro e que o aplicativo Mano está aberto a qualquer figura, conhecida ou não, que deseje ter o seu canal particular. Mas, o fato é que os contratos foram feitos às pressas, os dados de professores e alunos tem valor neste mercado, jovens e adolescentes estão coligados a mesma plataforma que agencia essa fábrica de mentiras, para dizer o mínimo.

Voltando à questão das inovações educacionais de fundo tecnológicos: 1) Elas estão dentro das disputas pelo currículo e apelam à renovação eterna em um ambiente que é perenemente revigorado por novos alunos. Isto é, um campo aberto para consumo de tecnologias começando pelo berçário; 2) Tecnologias educacionais não são necessariamente “boas”, porque são imediatamente “novas”; 3) Tecnologias capitalizadas na forma de “modernidades educacionais” pelo agenciamento privado da condição pública, já é uma coisa horrível, quanto pior, no momento que milhões de alunos, estão próximos à tal fidelização do capitão, por discursos fascistas, segregadores e mentirosos. Estão ali, unidos, nesta plataforma que serve à escola pública “de graça”.

Fingindo ser mais ingênuos do que somos, descansamos de nossos semelhantes, já dizia um filósofo.

 

Katya Braghini é Doutora em Educação, professora e pesquisadora do PEPG em Educação: História, Política,Sociedade (PUC-SP), historiadora da educação. Publicado originalmente em Outras Palavras

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